lucidez

“Teria, eu, um momento de lucidez perfeita?
O que faria num átimo de potência infinita?
Aonde eu iria quando onipresente?
O que quereria saber, sabendo-me onisciente?”

– Curvar-te-ia sobre si mesmo e tornar-te-ia o infinito. Da luz de teu ventre, vida.

viva a cidade!

Os ossos da cidade, nascem das veias de asfalto,
Concreto, aço e vidro.
Formam as pernas, os braços, os galhos e as presas.

Os fios são os nervos que a coisa-cidade espalha
Para falar, para coordenar, esquentar e enxergar.
Cagar, mijar, banhar.
Tudo passa pelos ralos, canos e tubos.
Fios, postes e antenas.

A cidade é viva.

Para terminar o dia… a minha preferida dele.


Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espirito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E porque toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando agente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido.” –
“Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

… … … … … … … … … … … … … … … … … … …

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É a minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
… … … … … … … … … … … … … … … … … … …

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

… … … … … … … … … … … … … … … … … … …

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

Mais um pouquinho de Fernando Pessoa.

Lu… é incrível como tudo já foi dito. É só questão de querermos escutar.
Ingrid, nesse poema vc pode aprender mais sobre mim que em qualquer biografia já escrita ;O)

Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva –
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela unica grande razão –
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraido.

Alberto Caeiro, 7-11-1915

pedestres

As faixas da rua observam histórias diárias,
de bombas humanas empavoando-se.
misérias de rodas, com ou sem pernas,

mas são meias histórias, apenas um cruzar,
é apenas um meio, sem fim.

As faixas da rua são histórias,
frescas como o asfalto, virgens até a primeira pegada.
desfazem-se na pressa dos pneus.

assim como a memória dos homens.

sono

Somente quando
não temos mais
força para levantar.

Ou quando as línguas
esfoladas, desconexas, epiléticas,
titubeiam em falar.

Quando a última gota
de resistência
é tomada pelo olhar do algoz.

Somente aí é que agarramos a idéia
que é bom estar vivo.

E lutamos com o resto de sopro, com o último estupor,
com o espamódico gesto, dizendo:

– Quero viver, me deixe dormir.

Lu,

eu te agradeço pelos ovos de páscoa.
eu te agradeço pelo carinho à distância.
eu te agradeço por existir.

Mas uma coisa não me deixa calado.
Você mandou um livro de crianças,
para aquela que está ao meu lado,
ou aquela que mantém viva a minha esperança?

Muito obrigado! :O*

Trilhas infantis

Um amigo, ao reescutar a trilha sonora do Sitio do Picapau Amarelo (a da decada de setenta, nao a de hoje) me chamou a atencao de como eram politizadas algumas das letras. Uma delas, em especial, a do tema do Arraial dos Tucanos dizia assim: “Até quando o homem que da terra vive/e que da terra tira o pão diário/vai ter sua paz?/paz, aparente paz./Paz, aparentemente paz”. Eu sei que os conflitos no campo não são (nem eram) nenhuma novidade, mas expressar isso numa música de um programa infantil e em plenos anos 70 era (e ainda o é) um tanto ousado, principalmente nos padrões bundalizantes dos dias de hoje.

E isso me faz pensar um pouco. Paremos. Respiremos. Pensemos.

Nos anos 70 tínhamos um regime ditatorial, cerceador da liberdade. Hoje, temos uma liberdade e uma defesa do direito de expressão exemplar no mundo inteiro. Somos um povo tolerante, sem tantos preconceitos explícitos. Então me respondam, por que não conseguimos produzir cultura decente com essa liberdade? Digo, porque é tão difícil fazer minha filha ouvir música decente aos sábados ou nas manhãs? porque eu não consigo ver artistas fazendo arte de fato nos sábados à tarde ou no domingo à noite? por que?

É que sucumbimos ao tirano definitivo, ao déspota etéreo, ao senhor de todo o suor, de todo o sangue, de todo o gozo, ao deus Mammon.