Os nomes de Hermes

publicado na Tribuna da Imprensa

Lá estava ele, na cobertura do Hotel, ignorando a piscina e os que bebericavam ao som de uma banda desafinada. Ao que tudo indicava, a última moda eram garotos que vociferavam coisas ininteligíveis num microfone mal ajustado. Os instrumentos já eram coisas do passado e um baticum eletrônico ao fundo dava o tom da turba que, teoricamente, deveria fazer a pista ferver. De fato, a ausência de pessoas na pista acelerou o processo de troca dos rapazes por um muzak igualmente desinteressante nas caixas de som. Ao menos se identificava uma guitarra e um saxofone eventuais nas músicas insossas e repetícias.

As pessoas que o cercavam combinavam perfeitamente com o espírito do ambiente. Todos fingiam se divertir e conversavam sobre assuntos falsamente interessantes. Talvez A ou B ousassem iniciar algo realmente importante, mas A’ e B’, seus interlocutores, lembravam-nos que ali não era local de trabalho nem era um evento para pensar. Apenas era para comemorar o aniversário d’A Companhia. De rabicho de olho via-se o chefe do financeiro se insinuando para a menina do TI ou os rapazes do marketing chegando mais “brilhantes” do banheiro. De qualquer modo era um desfile de lugares-comuns: o bêbado inveterado, as meninas que ambicionavam uma ascensão pelo modo mais custoso, os rapazes que usavam o evento como warm-up para mais uma noite de farra, os diretores enfadados mostrando-se falsamente contentes. Ele mesmo era um dos lugares-comuns, mas explícitos. De preto, não sorriu, bebeu pouco, comeu menos ainda, conversou um grande nada com alguns conhecidos.

Pensou: “Talvez algum sexo casual pudesse sair dessa porra!” Como que se lhe respondesse, chamaram-no para a pista. “Música de merda!” Deu as costas e ignorou o apelo. Jogou fora a única chance real de se fazer algo interessante naquele evento. Encostou-se na mureta e, num átimo, passou na sua cabeça todas as histórias cômicas de suicidas. Lembrou de um trecho do “Uma Longa Queda” do Nick Hornby. De certo estava ficando velho. Definitivamente velho. De dentro para fora. Ficou observando as ondas no preto do oceano noturno.

Era engraçado observar a praia àquela hora. Apesar das luzes da avenida, dos mastros dos campos de futebol, dos quiosques e do desenho da calçada, ainda se conseguia imaginar o fascínio do mistério das ondas à noite. Lembrou-se do tempo que ia jogar bola com os amigos da Constante Ramos. Nos intervalos sentia, ainda que distante, o aconchego do soar na areia, o calor acumulado do chão e o terror do negrume do mar. Nunca conseguiu entender quem se atira de um prédio, submetendo-se ao desespero da queda e à eterna expectativa do chão, mas simpatizava com o que dispara à têmpora uma bala. Este não tem tempo de se arrepender. Aquele pode achar que errou exatamente na derradeira vez. Mas, sobretudo se alinhava com quem se seduz com o cantar do mar à noite. É contraditório, mas quem há quem diga que o homem é coerente, sensato ou sagaz. Somos todos ar e água. Sopro e fluidez. Tal e qual o mar que quebra à noite como se não temêssemos a areia, nos atiramos à vida.

Olhou o telão desfocado, os discursos inócuos que se sucediam no palco, a turba vibrando por pão e circo, o frenesi das pessoas entrando e saindo da cozinha improvisada, a orgia dos comensais à mesa do buffet e sentiu-se farto daquela vida inútil e sem sentido. Enjoado, arremessou pela murada a antiga vida e desceu as escadarias, renovado, para encontrar-se com uma antiga amada.

Atravessou a Atlântica e sentou-se no primeiro quiosque vazio daquela noite fria. Como companhia, as putas e pedintes enregelados por conta do inverno polar do Rio de Janeiro. Ali, entre os desgarrados, os sorrisos não mordiam, os interesses sinceros e urgentes e as necessidades prementes. Ali, o mundo fazia sentido.