o dilema do psicopata

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A moça sai para um encontro com o moço. É a primeira vez que se encontram e, apesar de suas investigações digitais, não descobre muito sobre o seu objeto de desejo. Conheceram-se num aplicativo de paquera e conversaram um tempo antes de marcar o café. Nada indicava que houvesse algo errado, mas ela estava com a pulga atrás da orelha. Nas redes sociais, ele era neutro: comentava filmes e séries e só. Não tinha família nem muitos conhecidos.

Uma amiga disse: “É uma cilada, miga!” Outra: “Vai ver qualé. Você não tem nada a perder.”

Exceto a vida.

A moça foi. Ambiente legal, descolado, cheio de gente. Ele chega. Bonito, agradável, simpático e cheiroso. Conversam. Beijam-se. Ele propõe: “Vamos para um lugar mais privado?” Eles querem transar e está claro para todo mundo.

Aí se prenuncia o dilema: a moça poderia não ir e não “concluir” o processo. Poderia ser cautelosa mas estaria negando seu desejo claro. E é possível que não encontre mais o moço. Ela irá viajar em breve e passará meses no exterior. A fila anda e o cara é rápido.

Ela concorda. O dilema real se apresenta. Na casa dele ou dela. Ela fica em dúvida. Ele brinca “não sou um psicopata, um assassino”. Ela retruca “é o que um assassino diria”. Eles riem. Ela, de nervoso. Ele resolve analisar o caso, eloquentemente.

“Temos uma condição imutável: ou sou ou não sou um assassino. Se eu não for, o local será irrelevante. Nós nos curtiremos e nos separaremos. Se eu for, o local será irrelevante para você: estará morta no fim do processo.”

“Agora, se eu for um assassino, o local será relevante para mim. Se for na sua casa, deverei ter cuidado com quem me verá, com os ruídos e com meus rastros. Mas isto acontecerá apenas uma vez. Não voltarei à sua casa novamente. Se o local for sempre a minha casa, deverei ter os mesmos cuidados, mas repetidamente. A cada vítima que eu fizer, o risco aumentará.”

“Portanto, o melhor local, em qualquer primeiro encontro, é o do outro. Para sua segurança”

Encantada pela lógica do rapaz, ela topou. E nunca mais foi vista. Ele era realmente bom no que fazia.

especialidades

Escuta.

Desculpe lhe dizer isso (mas não me perdoe), mas você não é especial. É isso mesmo. Você não é especial, eu não sou especial, poucas pessoas no mundo são, foram ou serão especiais de fato. E isto não deveria lhe diminuir. Essa bobagem da modernidade, dizendo que somos todos especiais, únicos e inéditos no mundo, na história do mundo, é uma das maiores idiotices que poderiam ter inventado. Criou-se um “ego coletivo” que faz cada indivíduo achar que é a solução para os problemas do universo, da sociedade, das relações; como se cada um carregasse um imenso 42 tatuado em suas mentes e almas. E para quê? Para vender “carros especiais” e “perfumes com fragrâncias únicas” e “cigarros exclusivos”e fomentar toda a forma de consumo e experiência que possam nos destacar da multidão de iguais que somos. Nós somos essencialmente a mesma coisa, a mesma história repetida infinitas vezes à exaustão de quem quiser acompanhar o mundo como novela. Nós somos biomassa roubada de outros animais e plantas (e alguns fungos); somos energia capturada do sol; somos reaproveitamento do carbono trazido por cometas (ou detritos de Mercúrio, vai saber…) e calhamos de ter consciência e capacidade de comunicação hipertrofiada por puro mecanismo evolucionista.

Não somos especiais. Você não é especial. Pegue lá o seu pano de bunda e vai dormir sozinho. Ninguém vai lhe querer hoje.

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Penso em Solaris, do Stanislaw Lem. O planeta Solaris é coberto por um colóide-oceano consciente e que, ao se comunicar com os humanos que ali estão inadvertidamente estudando o planeta, cria ilusões enlouquecedoras. Penso que somos parte de um “colóide heterogêneo” que cobre a superfície da Terra e que tenta se comunicar com o todo ao redor sem se dar conta que somos essencialmente esse mesmo todo; que não há divisão real e factual entre a atmosfera e as gentes, por exemplo. Somos todos um arroto do Grande Sol.

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Me irrita a sua necessidade de se sentir especial. Parece que a sua rotina, a sua (falta de) autoconsciência lhe incomoda a tal ponto que quando o outro não lhe trata com deferência, tudo que é dito soa como ofensa. O mundo não está preocupado em lhe ofender, pessoa. O mundo quer é lhe consumir até os ossos. O “ciclo do carbono” é cruel e irá lhe chamar de volta até os componentes básicos. Esses mesmos que você se apropria covardemente pois até mesmo os vermes e larvas arriscam suas vidas para se alimentar do seu corpo (vivo ou morto) enquanto você delega sua alimentação ao esforço de outrem. Até mesmo um parasita tem mais brio e coragem que você para continuar vivendo. E me vem com a soberba de deferência, de exclusividade, de tratamento único. Para mim você é mais um número, um código, uma história a ser contada. Diferente, mas em nada especial. Como a oitava bala que é chupada; como a décima refeição do mês; como a centésima face que cruza o meu trajeto entre a casa e o trabalho e que sempre ostenta a mesma fleuma, urgência ou arrogância ao atrapalhar o caminho de quem tem pressa. Todos na Berrini têm a pressa de quem irá salvar o mundo. Exceto na hora do almoço, quando a rua passa a ser privilégio das multidões engravatadas e enternadas.

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Penso em Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, em que as pessoas tomavam “soma” para se entreter e suportar a bizonhice que era viver em tal mundo. Onde o entretenimento é ferramenta de controle e opressão e a divergência, o questionamento e a reflexão, banidos socialmente. Penso no livro e programo a minha maratona de séries da semana, ativo o jogo viciante no meu celular e tomo o sexto analgésico para a dor nas minhas costas. Dor que vem de tanto sentar ao invés de deitar na grama e olhar as nuvens.

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Pior que essa sua necessidade de se destacar dos demais é a de endossar quem alinha no mesmo discurso. A maior dominação acontece quando aceitamos o discurso do dominador, do controlador e interiorizamos esse processo; passamos a achar que é verdade a ilusão construída com discursos de gerações a fio. O mundo, pessoa, não é feito de discursos, mas de entropia, de trocas termodinâmicas, de violências químicas travestidas de vida e fotossíntese e quimiossíntese e decomposição. A vida é um delírio da Terra, mas ao menos ela é verdadeira. Esses discursos pelos quais você mata e morre diariamente são apenas tinta em celulose, elétrons ativados numa tela de vidro ou ar pifiamente vibrado no seu ouvido. Essas verdades estão apenas na sua mente e lhe dói sobremaneira aceitar isso. Agarras a isso como se fosse o mesmo que abraçar quem lhe acompanha na vida ou quem lhe dará a vida com sua morte. Não ama a caça que está no seu prato, mas ama quem vive do seu suor, do seu tempo; do sacrifício do seu tempo e que lhe remunera com mais histórias, promessas, palavras. Ama quem lhe despreza e que, ao dizer que é diferente, lhe trata como mais do mesmo.

Dizia Pessoa: “Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia/Cadáver adiado que procria?“. Eu digo: tua loucura é ser diferente disso, besta!

interrompendo

Não acredito no pecado; ou melhor: não acredito em santos que apontam um determinado pecado. Para mim, só quem sabe o que é o roubo – alguém que viveu o furto – é que tem uma condição mínima para opinar, ou ainda, para apontar quando ele acontece. Claro, estou generalizando, mas o fundamento é forte.

Digo isso porque sou uma pessoa que interrompe o discurso do outro. Faço para fazer calar o pensamento alheio. Interrompo porque tenho urgência em fazer minha voz ser notada em detrimento a do outro. Faço porque não fui educado a ouvir.

Claro que numa conversa há pontos de interrupção, que há momentos não avisados que o outro pode entrar para fazer um comentário ou colocar um contraponto. Numa conversa não há um ponto-parágrafo para a fala do outro se imiscuir, se misturar insolúvel. Mas o que tenho observado (em mim, primeiro; nos outros, por dor) é que normalmente o ritmo da pausa é deixada num segundo plano, é detalhe na conversa. O que acontece é um suceder de monólogos ou um desejo de fazer graça ou a vontade de esmigalhar retoricamente o outro participante do diálogo. Vejo isso em casais, em colegas de trabalho, em professores e alunos, em jogadores, em mesas de bar, em conversas casuais, em discussões de trabalho. Enfim. Na vida

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Mas qual o porquê desse tema agora? Há motivos anedóticos da minha vida, mas a vontade do texto veio de uma série de comentários de uma série de vídeos de entrevistas. Conto aqui.

Há tempos meu “pano de fundo” da TV em casa é o streaming de séries do YouTube. Muitas vezes são vídeos de terror ou ficção científica; programas de humor ou desenhos animados, mas eventualmente rola uma série de construção primitiva (Primitive Tecnology – https://www.youtube.com/channel/UCAL3JXZSzSm8AlZyD3nQdBA) ou de linguística (NativeLang – https://www.youtube.com/user/NativLang), história (Buenas Ideias – https://www.youtube.com/channel/UCQRPDZMSwXFEDS67uc7kIdg) ou ainda de filosofia.

Um dos canais que “frequento” é o da Casa do Saber (https://www.youtube.com/user/casadosaber) que elenca uma série de pílulas bem legais sobre diversos pontos de vista filosóficos mas eis  que me deparo com uma série (“Quem somos nós” – https://www.youtube.com/channel/UCIj7UmUVFTFC9yXNiZoRmEg), capitaneada pelo Celso Loducca que tem a proposta de um bate-papo sobre diversos temas de filosofia e psicologia, economia e afinidades.

Só que o “entrevistador” padece do mal da interrupção na mesma linha que o Jô Soares, Fausto Silva  e outros profissionais do ramo que usam a interrupção para colocar conclusões na boca do entrevistado, normalmente erradas ou redutoras e que calam, quebram e diminuem o discurso, independente de sua relevância, viés ou profundidade.

Uso esse exemplo para sublinhar a tendência de ter que se fazer presente no discurso do outro, quando o momento é do outro, não de quem interrompe. E para generalizar, apontando que ela é em diversos níveis de educação, classe social ou origem cultural. Vi o mesmo no Letterman (mas com outro grau de pertinência, claro) e no Leno, nos programas de tevê estadunidenses.

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Brinco com meus amigos com o “nunca interrompa um ariano”. Por vezes a construção do raciocínio se dá na fala aberta, no discurso falado e quebrar essa linha destrói totalmente a mensagem de quem fala. Por vezes a interrupção vem apenas do incômodo do ego (da id, na real!) ao ouvir algo que lhe incomoda ou para chamar a atenção para si (“como assim não sou o ‘astro’ deste discurso?“). Na real o que incomoda é o que vem de conteúdo da interrupção.

Tenho tentado interromper menos o outro. Falar menos tá difícil, já que minha profissão exige que eu fale bastante (ao menos nas reuniões) e tento sempre ponderar se “o que tenho a dizer é relevante?”. Claro que isso é subjetivo e nem sempre é eficaz, mas é o contraponto que posso tentar a oferecer ao mundo, já que calei tantos durante minha vida inteira com piadas, ofensas, bobagens ou apenas falta de educação.