O país dos guarda-chuvas e outras praças

publicado na Tribuna da Imprensa

O país dos guarda-chuvas

É fato sabido que os guarda-chuvas são criaturas temperamentais e matreiras mas, a despeito disso, conseguiram uma simbiose histórica com os seres humanos. Há milhares de anos os guarda-chuvas – assim como os cães, ratos e baratas – adaptaram-se às primeiras comunidades nômades de homo desapiedada e adaptaram-se perfeitamente.

A disseminação dos guarda-chuvas nas comunidades humanas está bem documentada por registros históricos, mas uma dúvida sempre pairou entre os biólogos que se dedicavam a estudá-los: “onde eles se reproduzem?”

Esse mistério foi recentemente resolvido por uma equipe multi-disciplinar de arqueólogos, biólogos e dançarinos de frevo que foram até o sul da China revelar, após dezenas de milhares de anos, uma área semi-virgem onde os guarda-chuvas se reproduzem após migrar por centenas de milhares de quilômetros do mundo todo.

Os moradores da província de Zhen-Cha – principal porto de captura, treino e exportação de guarda-chuvas selvagens do mundo – já conheciam os fluxos migratórios dessas criaturazinhas ariscas e ajudaram muito no mapeamento até a grande descoberta final.

Ainda restam alguns mistérios que envolvem esses animais exóticos como o processo de catalepsia controlada quando na presença de seus domadores e a fobia instintiva de ventos fortes que acomete a todas as espécies conhecidas de guarda-chuvas, sombrinhas e guarda-sóis.

O cemitério das canetas esferográficas

Ao sul do País dos Guarda-Chuvas, os pesquisadores fizeram outra incrível descoberta: o lendário Cemitério das Canetas Esferográficas.

Poucos seres humanos presenciaram a morte de uma caneta esferográfica em mãos, ou ainda, acompanharam o seu ciclo de nascimento, desenvolvimento e morte completamente, a ponto de não se saber a extensão de vida media desses animais sapientíssimos. Sabe-se, contudo, que eles revelaram-se à humanidade em meados do século XX, na França, e foram rapidamente integrados à sociedade e logo tomaram o lugar de um primo evolutivo seu: a caneta-tinteiro.

Os pesquisadores estranharam a forte presença de fósseis de bicos-de-pena e algumas tumbas violadas de canetas-tinteiro ao se aproximarem do País dos Guarda-Chuvas mas nada se comparou à surpresa de encontrar centenas de milhões de sepulcros de canetas esferográficas.

Algumas poucas canetas nativas da região foram entrevistadas mas nada conclusivo chegou-se até agora. Por outro lado elas foram bem receptivas ao descrever o Condado das Meias.

O condado das meias

Esse outro palco de lendas foi revelado nessa mesma expedição, quase que por acaso, e a sua história revelada inteiramente pelos nativos residentes do Cemitério das Canetas Esferográficas. As meias – escravizadas há centenas de anos pela humanidade – tramam uma rebelião atávica desde o início de sua história conhecida.

Recentemente – cerca de quarenta anos atrás – elas criaram o plano ideal de fuga da tirania humana imposta a esses dóceis seres. As meias abandonam a sua metade inerte, como uma lagartixa abandona a sua cauda, e buscam locais obscuros nas habitações humanas – fundos de gavetas, máquinas de lavar e cestos de roupas – e fogem ao primeiro sinal de distração dos seus algozes. Das casas dos humanos até o Condado das Meias, há uma vasta rede mundial de canetas esferográficas que dá suporte e amparo às meias para que migrem até o seu destino final.

Emissários de diversos países estão se mobilizando para recapturar as meias perdidas.

Saber crescer

publicado na Tribuna da Imprensa

Nunca mais olhei a pequena com os mesmos olhos. Eles não cabiam mais em mim e a imagem da criança de cabelos encaracolados tampouco cabia nela. A menina, já pré-adolescente, tinha o seu próprio mundo, cercado de nomes que eu não entendia, músicas que eu curtia, maneiras que eu estranhava. E eu, acima de tudo, um estranhamento típico de quem envelhece e não se dá conta disso.

Sentamos na cadeira do shopping center – essa praça moderna – e tomamos um sorvete vadio, um picolé de várzea, um ato cada vez menos urbano e mais confinado. Eu observava a indiferença da pequena ao mundo que a cercava e tinha certeza: havia ali um cínico se desabrochando.

Sabemos todos que o cínico não se faz, é descoberto. Algo entre os dez e os dezoito anos desperta junto com os hormônios e transforma o mais feliz e iludido dos infantes num inexorável e inamovível adulto. Afirmo categoricamente que todo adulto é um cínico.

Mas não é a modorrenta maturidade que me assombrava ali, naquele momento, mas o desabrochar do cinismo e – por que não dizer – do deboche adolescente que jorrava pela boca e pelos olhos daquela criaturazinha que mal ultrapassava os meus ombros no alto dos seus dez anos recém-completados. Eu reparei que ela não se encantava mais com as coisas. E entendi que o cinismo era exatamente isso: a morte do encantamento.

Não confundamos alhos com bugalhos agora. O encantamento pode – e deve – ser um processo bem racional e consciente. Como não se admirar do fato de tudo e todos termos a mesma origem no mesmo evento singular de quinze, dezesseis bilhões de anos atrás. Ou de termos a certeza racional que somos senhores de nós mesmos, com a responsabilidade moral, ética e concreta que isso traz às nossas vidas, sem termos de depositar essas cargas em algo divino.

Mas nada é tão belo quanto o encantamento infantil. Porque ali, as coisas tomam um sentido próprio, o do descobrir os sentido nas coisas ensimesmadas. Nelson Rodrigues escreveu que “aos três anos o sujeito começa a inventar o mundo” e nessa invenção há um deslumbre que não se renova nunca mais na vida. Ok. Talvez quando alguém escute uma determinada musica de uma banda que lhe fará comprar uma guitarra ou uma pintura que lhe convide a sentar horas e horas a fio à sua frente.

Já eu precisei mudar de cidade e encarar um pôr do sol na Lagoa Rodrigo de Freitas para me relembrar encantado com o mundo.

Eu acredito piamente que o homem quando descobre-se cínico, perde a capacidade desse deslumbre primário. Um sorvete passa a ser apenas um sorvete; uma praça, a mesma praça e nada mais que isso. Nós, os adultos, já vimos tanto do mesmo que perdemos a noção da coisa e – tragédia! tragédia! – mantemos a lembrança do deslumbre. Pois o que é essa nossa busca pelo novo, senão um desesperado apelo à memória do universo encantado que nos fora apresentado quando tínhamos menos de um metro?

Ali, na praça do shopping center, os sorvetes derreteram goela abaixo, pegamos as compras e partimos rumo ao dia seguinte.

Depeche Mode – Let me show you the world in my eyes

Let me take you on a trip
Around the world and back
And you won’t have to move
You just sit still

Now let your mind do the walking
And let my body do the talking
Let me show you the world in my eyes

I’ll take you to the highest mountain
To the depths of the deepest sea
And we won’t need a map, believe me

Now let my body do the moving
And let my hands do the soothing
Let me show you the world in my eyes

That’s all there is
Nothing more than you can feel now
That’s all there is

Let me put you on a ship
On a long, long trip
Your lips close to my lips
All the islands in the ocean
All the heavens in the motion
Let me show you the world in my eyes

That’s all there is
Nothing more than you can touch now
That’s all there is

Let me show you the world in my eyes

Grupo Rumo – Ninguém chora por você

Ninguém Chora Por Você
(Luiz Tatit)

Filho, se cuida,
Você quer chorar
Você não percebe
Mas eu sinto que você quer chorar
E sinto que você não percebe
E são tão tristes!
O modo de você ser
As coisas que você vem
Dizer pra gente, filho!

Você ri, você canta
Você é um grande guerreiro
Não fraqueja, não demonstra nada
Mas chora!
É o mínimo que você tem que fazer
Chora antes que chorem por você

Filho, repara,
Você está chorando
Você não percebe mas eu vejo
Que você está chorando
E vejo que você não percebe
E são tão simples
Os olhos que você faz
A boca que você treme
Quando conversa, filho

É tão triste, é tão simples
E tão bem simulado
No entanto eu percebo tudo
Ignoro!
Ignoro de propósito, sim
E não espere que eu chore por você

Voz e Violão: Luiz Tatit
Voz: Ná Ozzetti
Flauta Doce Tenor: Hélio Ziskind
Flauta Doce Baixo: Ciça Tuccori