As estrelas

publicado na Tribuna da Imprensa

Costumo ir ao Rio uma vez ao mês, ao menos. Uso a “desculpa” que tenho de visitar a minha filha, mas a verdade é que não tenho obrigações nenhumas. Vou porque ali é que mora a minha história, a minha memória e passar tempo com a baixinha – que já se torna uma adolescente – é um prazer, nunca uma obrigação.

Passeávamos à praia, com o sol se pondo e ela, mirando a estrela d’Alva, me perguntou sobre as estrelas cadentes.

Tentando ser poético – como isso ajudasse em alguma coisa a minha imagem com ela – disse que as estrelas cadentes são o choro do céu. Pessoalmente, nunca entendi essa coisa de desejo a ser realizado quando se vê uma delas riscando o negrume da noite, acho mais válido fazer à primeira estrela – “first star I see, I make a wish tonight” – a uma que cai.

Em resposta, ela as comparou a vaga-lumes, só que sem o brilho constante e repetitivo – acho que essa menina vai ser mais uma bióloga – mas não engoliu direito a história de choro e céu. Não sei por que insisto em poetizar com essa criaturazinha cínica e materialista.

“São apenas estrelas que caem” – menti para ela por preguiça de explicar as efemérides dos asteróides e detrito estrelares que se incandescem ao entrar na atmosfera – “são estrelas que ficam tristes do lugar que estão e resolvem se mudar de lugar, como o pai.” Insisti no erro.

“Mas as estrelas têm amigos, pai. E gente que olha por elas. Como podem ficar tristes ali?”

Daí eu desatei a explicar os motivos e razões das pessoas ficarem tristes, a angústia original que move o ser humano, o inconformismo com o presente, a falta de perspectiva, o desejo de mudança, mas a menina – cínica, cínica e objetiva – tinha um bom ponto de argumentação.

Ela virou os olhos com aquela expressão de você-não-entende-nada-papai a qual costuma usar quando eu cometo essas besteiras de tentar ser mais inteligente que ela. Um dia eu aprendo.

“Papai. O que uma estrela cair é a queda. O resto é o só o choro.”

Deixei a baixinha em casa e me encaminhei para a rodoviária, onde o ônibus da meia-noite me esperava. Embarquei e ao acordar, já em São Paulo, me veio a imagem de uma estrela cadente no alvorecer. Fiz um desejo inconscientemente e parti para a minha rotina diária.

No decorrer da semana, a história da estrela não saiu da minha cabeça, mas, como sempre, a vida não dá muito tempo pra gente pensar nela mesma. Ela oferece tanta opção, tanta cobrança, tanta vida que somos impelidos a achar que essa cacofonia de eventos que se sucedem em movimentos frenéticos é a vida em si.

Papeava numa mesa de bar com uma amiga, e falávamos de suas angústias. Das diversas histórias que ela havia passado, dos relacionamentos desfeitos, das pessoas que nunca se encaixam devidamente no que sonhamos ou no que nos tornamos. Dos empregos e trabalhos que, embora venham em profusão para ela, nunca a satisfazem.

Soltei a pérola. “Lindona, o que interessa é só a queda, o movimento. O resto é o choro.” Não sabia bem o porquê da frase de efeito, mas o fato é que surtiu. Ela deu uma risada sonora e eu anotei mentalmente que tinha de dar um presente à baixinha. Não apenas por conta do dia das crianças, mas por ela ser o pequeno gênio emocional que é.

Chico Buarque – Olê, Olá

Chico Buarque – Olê, Olá
Chico Buarque

Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui
Pode passar e ouvir
E se ela for de samba
Há de querer ficar

Seu padre, toca o sino
Que é pra todo mundo saber
Que a noite é criança
Que o samba é menino
Que a dor é tão velha
Que pode morrer
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar

Não chore ainda não
Que eu tenho uma razão
Pra você não chorar
Amiga me perdoa
Se eu insisto à toa
Mas a vida é boa
Para quem cantar

Meu pinho, toca forte
Que é pra todo mundo acordar
Não fale da vida
Nem fale da morte
Tem dó da menina
Não deixa chorar
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Quem sabe sambar
Que entre na roda
Que mostre o gingado
Mas muito cuidado
Não vale chorar

Não chore ainda não
Que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
E um samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir

Luar, espere um pouco
Que é pro meu samba poder chegar
Eu sei que o violão
Está fraco, está rouco
Mas a minha voz
Não cansou de chamar
Olê olê olê olá
Tem samba de sobra
Ninguém quer sambar
Não há mais quem cante
Nem há mais lugar
O sol chegou antes
Do samba chegar
Quem passa nem liga
Já vai trabalhar
E você, minha amiga
Já pode chorar

Dois beijos

publicado na Tribuna da Imprensa

E foi isso: dois beijos e tchau. Aí ele olhou para ela e pediu o telefone. Ela deu. Ele chegou a pretexto de se despedir novamente sob alguma desculpa esfarrapada deu mais dois beijos. Ali no ladinho, derrapando na curva. Ela retribuiu os beijos com um olhar maroto. Ele saiu achando que tinha de ficar. Tomou caminho de casa com a sensação que algo ficara natimorto.

Abriu o livro que o fazia chorar de saudades de casa e das histórias e terminou-o. Reparou que o cheiro dela ficara na camisa. O cheiro de rosas? Cheiro doce e azedo. Cheiro que ficaria bem se misturado ao suor dele e ao atrito do látex e lubrificantes íntimos. Cheiro que combinaria com lençóis limpos em lavanderias industriais e odorizadores de quartos de hotéis de três estrelas.

Chegou em casa, tirou a roupa e tomou um banho. Tonto, por conta da cerveja forte, lavou-se por mais tempo que precisava. Lembrou-se das histórias que sabia da moça e sabia que era insensato insistir naquele curso de ação. Não era sensato, absolutamente. A história já estava escrita e reescrita e ele já errara suficientemente para saber o que fazer. Demorou-se mais que o necessário no banho. A água quente relaxava as costas tensas das semanas ruins que antecederam o evento. Sonhou um pouco com uma fortuna que nunca viria pela mega-sena. Sonhou mais um bocado com sexo com metade das mulheres bonitas que viu no dia.

Enxugou-se e vestiu o moletom centenário que usava como pijama. Fazia tempo que não tinha companhia feminina regular, daí o acúmulo de roupas que mereciam o oblívio no seu guarda-roupas.

Mandou uma mensagem de texto pro celular dela. “Quero te ver. Beijo.”

Colocou um Bob Dylan para ouvir e deitou-se na cama. O cheiro não sumia. Pode ser a camisa, a calça, as meias, a cueca. Levou-as todas para a máquina de lavar roupas e colocou-as em molho. Voltou para o quarto. Não entendia o que o velho Bob cantava, mas estava confortável e agradável. Pegou um livro do Eco e folheou umas dez páginas. Dormiu.

Acordou com Mr. Tamborine Man e viu que cochilara por dez segundos, ou minutos. Sonhou muito no meio do processo. Descobriu uma animação incomum para uma quinta-feira à noite e tomou outro banho. Bebeu água. Colocou Chet Baker para tocar no lugar. My Funny Valentine. Sentiu vontade de tomar um vinho e comer um pão com queijo. O vinho veio fácil, como água. O pão deu mais trabalho. Desistiu e abriu um pacote de batatas fritas de marca americana. Começou a tocar Billy Paul e ele trocou a música. Lembrava de uma moça que ele queria. E que tinha um perfume igual.

Sabia que não iria dormir. Olhou pro celular esperando uma resposta. “Duvido. Deve estar mais bêbada que eu.”

Era verdade.

Regina Spektor – Fidelity

(Shake it up)

I never loved nobody fully
Always one foot on the ground
And by protecting my heart truly
I got lost in the sounds
I hear in my mind
All these voices
I hear in my mind all these words
I hear in my mind all this music

And it breaks my heart
And it breaks my heart
And it breaks my heart
It breaks my heart

And suppose I never ever met you
Suppose we never fell in love
Suppose I never ever let you kiss me so sweet and so
soft
Suppose I never ever saw you
Suppose we never ever called
Suppose I kept on singing love songs just to break my
own fall
Just to break my fall
Just to break my fall
Break my fall
Break my fall

All my friends say that of course its gonna get better

Gonna get better
Better better better better
Better better better

I never love nobody fully
Always one foot on the ground
And by protecting by heart truly
I got lost
In the sounds
I hear in my mind
All these voices
I hear in my mind all these words
I hear in my mind
All this music
And it breaks my heart
It breaks my heart
Breaks my
Heart
Breaks my heart

I hear in my mind
All these voices
I hear in my mind all these words
I hear in my mind
All this music
And it breaks my heart
It breaks my heart
Breaks my
Heart
Breaks my heart
and it breaks my heart
it breaks my heart
and it breaks my heart
and it breaks my heart

Hojerizah – Roma

Composição: Flávio Murrah

agora eu sei
o ponto em que cheguei
certas pessoas me assustam
não pelas rugas
que se espalham no rosto
mas os anos se passaram
os anos se passaram
e elas nada entenderam
e continuam pintando
os seus cabelos
o tempo é outro
e as esperanças ficaram
dentro do quarto
ou na lâmina de uma gilete

tão breves
tão distantes
os beijos do mundo
eternos hesitantes

fingidos pelo mundo agora eu sei o ponto
em que cheguei
certas pessoas me acusam
só pelo uso que faço do corpo
mas os olhos se fecharam
os mesmos olhos
que choram os mortos
use melhor as suas lágrimas
com esse mundo que te rodeia
ou com a dor do teu ofício
ou a dor do sacrifício

tão breves
tão distantes
os beijos do mundo
eternos hesitantes
fingidos pelo mundo

ouça aqui

quintas

eu teria bicho se tivesse quintal
e teria quintal se tivesse casa
e teria casa se tivesse pouso
e teria pouso se coração morasse
e teria coração se moça bonita me amasse