Levantou-se. Na pia: barba, cabelo, remelas de olho. Privada e banho rápidos. Roupa arrumada de ontem. Café da manhã corrido. Jornal debaixo do braço. Cinco da manhã. Elevador, lances de escada, portaria. Olá pro porteiro. Ponto de ônibus. Pessoas mudas nesse horário. Minutos nervosos até o 433. Sobe. Paga. Senta. Janela do lado direito do ônibus. Cabeça encostada, a paisagem repetida da Nossa Senhora de Copacabana. Avenida Princesa Isabel. Coração um pouco apertado. Falta pouco para a amada. O amado. Tanto faz. Túnel Velho, Rio Sul. Coração na boca. Lá está.
Chovera na madrugada anterior e o céu ainda estava cinza. Era o cenário preferido dele. O amanhecer anunciado no horizonte, pintando de laranja, vermelho, amarelo e violeta as diversas matizes de gris da noite anterior. Mal conseguia conter o sorriso bobo ao ver o mar batendo lânguido na areia suja da praia de Botafogo. Ondas pequenas, espumas miúdas, repetidas, lentas, preguiçosas, gordurosas, imundas.
No espelho d’água, os barcos ancorados eram como enfeites num bolo de aniversário que teima em não ficar quieto: uns ainda no repouso, outros voltando da pesca, davam a vida que parecia estar congelada esperando o momento do sorriso quente vir do leste. O primeiro bafo de calor em contraste com a hora mais gelada.
Essa chegada era emoldurada pelas montanhas: o Morro da Urca, o Pão-de-Açúcar, as montanhas de Niterói do outro lado da enseada. Testemunhas eternas do espetáculo diário que é exibido a qualquer um que esteja se preparando para a jornada diária. Ou vindo das perdições da noite.
Essa apresentação era o que lhe motivava todos os dias. Sabia que ali renovaria a sua paixão por estar vivo, justificaria cada batida de coração e cada momento mofando dentro do escritório de contabilidade que lhe dava os recursos necessários para ser o espectador premium de cada alvorada.
No fim da praia de Botafogo, antes do ônibus ganhar o Aterro do Flamengo, ele se levantou para descer. Nunca havia feito isso antes. Sempre se contentava em contemplar passivo o amor que recebia em cada onda de luz e calor que o Sol lhe depositava através dos vidros embaçados dos coletivos. Levantou, puxou o sinal e saltou.
Saltou. Areia ainda úmida. Pés descalços. Sapatos na mochila. Meias também. Calça arregaçada. Sorriso no rosto. Beira d’água fria, gélida. Mochila ao chão. Camisa junto. Calça, cinto, carteira, celular. Corpo molhado. Ondas pequenas, espumas miúdas, repetidas, lentas, preguiçosas, gordurosas, imundas. Areia úmida. Cueca cravando no rego. Areia nas dobras da bunda.
“Oi.”
Virou-se para um lado enquanto o outro sentava na direção contrária do olhar.
“Não precisava disso. Você sabe, né?”
“Não pensei em nada. Só quis vir.”
“E me encontrou.”
“Pois é. Não contava, mas esperava.”
“E agora?”
“Não sei o que fazer agora. Tenho um emprego. Não preciso dele, é verdade, mas é cômodo.”
“Eu também tenho. É o que me define.”
“Sei disso. O caminho de Helios, a carruagem, etc.”
Cruzaram os olhares pela primeira vez. Era possível pesar o ar nesse momento.
“Sabe quando os deuses começaram a andar sobre a terra?”
“Não. Não lembro.”
“Quando começaram a invejar os homens. As paixões, os prazeres, o esquecimento, as dores.”
“Istar foi a primeira, né?”
“Sim.” Calaram um bocado. Deram as mãos.
“Por que logo aqui?”
“E existe lugar melhor para nascer que na enseada de Botafogo?”
Ambos sorriram. Beijaram-se. Um colocou as roupas estranhamente já secas e passadas, o outro continuou a sua jornada diária.
“Te espero amanhã.” Disse o que brilha.
“Te aguardo sempre.” Disse o que esmaece.