As ausências absolutas

Benjamim, meu querido menino,

ainda há de passar primaveras e outonos antes que você consiga entender o que teu pai carrega hoje no coração. serão estações inteiras que eu não dividirei contigo, memórias que, por diversos motivos, serão negadas às nossas memórias. a distância que nos separa é maior que os quilômetros, é uma distância que será medida em anos.

nas fotos que tenho comigo, eu olho o teu rosto redondo, ou melhor: desde que olhei o teu rosto de bebê pela primeira vez notei que você carregava a mesma herança que ficou para tua irmã. deixei para ambos os olhos caídos, meio tristes, meio melancólicos. sei que crescerá numa família que tem bem pouco de melancolia no seio e torço para que não carregue contigo a totalidade da minha herança. dizem que as características saltam gerações e assim espero que seja.

hoje eu não tenho muito para falar para ti, apenas do vazio que a tua partida me deixou, da saudade, do silêncio, da rotina quebrada, das obrigações puladas e não estou sabendo lidar com isto. quero te procurar mas acho que atrapalho as coisas neste momento. há a chance de se intervir demais e errar a mão, de passar mensagens que serão lidas estranhamente, erradas, e este é um risco que hoje não posso correr.

sei que há muito chão pela frente, para ambos, mas não consigo deixar de chorar, de viver o luto deste futuro que será absolutamente ausente.

do teu pai, que mora no futuro.

sobre o achismo

Durante milhares de anos a humanidade pensou(?) que o Sol girava ao redor da Terra. No frigir dos ovos, funcionava para caramba. Tava errado, mas funcionava. Calculava-se estações, plantios, colheitas; fez-se o calendário. Na real, pode até se dizer que era irrelevante saber quem girava em torno de quem. Era irrelevante até deixar de ser.

O maior problema do achismo é que ele funciona até certo ponto e as pessoas nem sempre tem (ou conseguem ter) a visão necessária para entender o limite da coisa. Não é porque uma tese funciona até aqui que ela está “certa”. Ela apenas “funciona até ali”. Não é porque você consegue vender com um botão pequeno no seu site (ou banner, ou app) que é a melhor solução. Às vezes algo está funcionando porque é o “que temos para o momento”.

As pessoas que plantavam precisavam regular as datas e momentos seguindo algum padrão. Usaram a Lua, o Sol e as estrelas para medir um mínimo. Mediram certo, entenderam errado. Era o que eles “tinham para o momento”. De novo, o erro fundamental pode acarretar em diversos acertos práticos porque se media corretamente as coisas. O problema é quando a medição passa a ser justificativa para o fato errado: apontava-se para o nascer do Sol e as estações para tentar invalidar o novo saber; apontava-se para a Lua e as esferas celestiais para invalidar evidências.

Por um outro lado, uma medição errada nem sempre é apontamento para uma inverdade (ou não-verdadeiro). Pode ser um problema tecnológico, uma questão de método ou mesmo de capacidade de quem mede. Dessas imprecisões é que nascem manifestações de pura estupidez como “A estatística é a arte de nunca ter que dizer que você está errado” (do C. J. Bradfield) ou “estatística é a arte de torturar os números até que eles confessem”.

O cerne da questão é que nem todo achismo é ruim per se, mas persistir num achismo, no alijar o profissional de um determinado saber, o renegar de um mapeamento de dados, fatos e evidências é um hábito que vemos se repetir regularmente em empresas de diversos setores, no nosso cotidiano não profissional e — pior cenário — na produção de conteúdo e informação de massa. Cada vez que um “entendido” fala de design ou de economia ou de filosofia ou de política e direitos humanos, ele comete — normalmente — dois crimes contra o saber: contra quem dedicou anos da sua vida para entender aquela área e contra si mesmo, ou melhor: contra sua reputação.

O interessante é que poucas pessoas entram nessa seara quando o assunto é a vida ou sistemas complexos. Dificilmente alguém discute com um engenheiro ou um cirurgião. Ou ainda com um mecânico de automóveis, vá lá. Este respeito parcial pelo trabalho e saber alheio é um pouco da expressão desse achismo, dessa arrogância nossa de achar que o outro tem um saber menor que o nosso ou que estamos sempre equivalentes em tudo.

Não estamos e a Terra é quem gira ao redor do Sol.

O cara e a praia

perdeu horas olhando o horizonte e mal se apercebera das pessoas que o rodeavam. havia a moça com um biquíni impossível, o rapaz com a barriga gomada, os vendedores de comidas, as vendedoras de amores, a promessa de luxo e aposentadoria à beira-mar, as conversas sobre jogos de futebol, luta e vôlei de praia, as flutuações do mercado, as oscilações da bolsa de valores, o preço do dólar, o como essa gente não sabe se comportar nos aeroportos e como essa mesma gente vem sujar a praia, a nossa praia.

perdeu mais horas vendo as nuvens cobrirem o sol e darem um alento a quem estava na praia sem barraca ou sem defesa contra o mundo. mal se apercebera que o dia findava levando consigo a semana, o mês, o ano, o futuro, o passado, os sonhos, os planos, o salário, a família, o sexo irregular, o tesão pelo outro, o olhar lascivo, a vontade de levantar da areia que fazia carinho nos dedos dos pés.

os pés cavavam pequenos buracos que viravam olhos d’água na areia da praia. água gelada. areia gelada, tempo gelado. não era verão, absolutamente. no horizonte, uma estação de petróleo se espreguiçava no caminho para Campos. plataforma gelada. óleo gelado.

acabou de beber a cerveja (quente) e espreguiçou-se em direção ao mar. largou a lata e cinco reais na barraca da areia. deixou chinelos e óculos na guarda do dono da barraca. foi até à beira d’água. respirou a maresia. mergulhou.

voltou à areia gelado gelado gelado. era bom estar em casa.

Toque outra vez, meu amor

Morava há anos no mesmo furdúncio que descolara num golpe de sorte com uma ex esquisita. Ela se fora com algumas lembranças ruins e deixara o contrato do aluguel com ele. O contrato, alguns móveis, uma grande almofada e algumas revistas bolorentas. As revistas foram pro lixo, os móveis doados assim que ele os repôs com memórias de outras namoradas e a almofada teve sua capa trocada. Tudo de acordo com as normas de Feng Shui que ele mesmo inventara.

O cantinho era espaçoso, ajeitadinho e ele tratou de povoá-lo com livros e garrafas vazias de uísque, vodca, cerveja importada, tequila, absinto, o escambau. Se fosse líquido, ele bebia e guardava a garrafa para alguma utilização esdrúxula. Desde o garrafão cortado ao meio de Sangue du Bois que virou um porta-jornais às garrafas de tequila especiais que duram na geladeira refrigerando líquidos mais nobres. Mas isso era apenas um índice da coisa toda.

A decoração por si só era um amontoado de histórias. À semelhança das casas das avós e tias centenárias, ela amontoava não só a memorabilia, os mementos do morador, mas era um acúmulo de diversas vidas que cruzaram com a dele. O incrível era que conseguia se lembrar com detalhes – e fazia questão de contar a quem quisesse – de cada causo de cada item da casa, independente da sua (ir)relevância real. Os cartazes, os bibelôs, os tapetes, mesmo as garrafas vazias e os livros, tudo tinha um causo, um nome e, normalmente, uma mulher envolvida. Ou várias.

Uma das poucas coisas que ele dizia que não tinha causo ou história era o tal do violoncelo – que ele, pernóstico, insistia em chamar de tchelu – guardado desafinado e empoeirado atrás dos sofás da sala.

O cello era uma presença muda na sala caótica. Se perguntavam se ele tocava, ele não. Se perguntavam se ele gostava de música clássica, ele não desgostava, não amava. Se perguntavam se era de decoração o bicho, achava-o horroroso. Se perguntavam se valia dinheiro, não sabia nem quanto custava para tirar o treco dali. Ainda assim, meio por inércia e meio por charme, o cello permanecia incólume, impávido e assunto inexorável para as visitas.

(Aí tem a virada na história, né? a gente – essa gente que se predispõe a escrever – tem que colocar virada na história para ela ficar interessante e dar liga para quem lê. E o que seria da gente que tem história para contar se quem lê não dá bola nem pelota para o que a gente diz?)

Certa feita, certa moça resolve entrar na vida do moço (que de moço tinha bem pouco) e você já pode adivinhar o que ocorre, né? ele cai de quatro pela moça, fica embasbacado e, como em toda história de amor verossímil, rola um lance ela não liga mais para ele e ele fica na mão. Literalmente.

Acontece que a moça curtiu o cara a ponto de voltar mais uma, duas vezes. Sempre de forma irregular. Não muito diferente do que os moços com muitas opções fazem. Afinal essa coisa de romance é questão de oportunidade de convencimento, né? Um convence o outro que é o the one e ambos seguem juntos até verem que não é bem assim, que não existe essa parada de the only and solely one mas que é legal ficar juntos e tal e bora pra frente que a vida não pede licença para acabar e vem chegando e arrastando a gente pela corrente sem fim de acontecimentos. Ou cai a ficha e ambos dão o pinote antes que virem inimigos ou se odeiam por anos a fio e todas as variações que todas as novelas já exploraram de forma exaustiva e cacete por esses anos todos.

Mas teve tal dia que a moça resolve passar a noite com ele. Estava triste, carente e ele nem era tão feio e nem tão chato e nem tão ruim de cama que não rolasse um cafuné pelado dessa vez. De manhã, ela – já linda, linda – sacudiu os cabelos que agora usava curtinhos e platinados para espaços que não existiam mais. Era um carinho eventual auto-indulgente que virara um tique dos tempos que as melenas eram mais longas. Ele já sabia porque ela havia confessado que queria deixar crescer um pouco antes do fim do ano e ele mentiu que também pensava em deixar crescer mas o que queria dizer é deixa eu vê-lo crescer a cada dia, todos os dias até que ambos ficassem grisalhos e velhos e os netos iriam zombar dos cabelões do avós e eles iriam rir e morrer felizes.

Ela foi nua até à sala e fitou o cello. Disse para ele que queria dançar – nada a ver com o instrumento, só que ela achava interessante aquele bicho vermelho-marrom no meio da sala bagunçada – e disse que queria riscar o chão. Falou isso como quem conhecia bem o jargão da noite como quem já rodara por todas as academias e rodas de samba bolero pagode choro valsa funk rock tango da cidade. Tá faltando alguém com brio de encarar a loira aqui, brincou com ele, e tá faltando um lugar legal também. Saí da festa anteontem arregaçada de vontade e necas de pitibiriba.

Ela se vestiu logo depois e deu beijo de adeus até não sei quando te ligo não me liga, tá?

Quando voltou da porta fechada, ele olhou de novo pro bicho marrom-vermelho. Nunca vou aprender a tocar essa merda mesmo, sentenciou.

Abandonos

As ideias me perseguem nas horas mais impróprias. Vêm no meio de um filme, ao atravessar a rua, ao subir no ônibus. Anunciam-se no banho, na privada, ao me limpar. Nascem quando tenho que segurar a porta para a moça carregada de compras que eu, desleixado, esqueço de ajudar até o fim, até o andar correto. Faço a descortesia, fazendo uma gentileza. As ideias vêm assim, inconvenientes, inesperadas, me pegando despreparado para registrá-las ou sem vontade para desenvolvê-las mais a fundo, até o fim.

Invejo esses filósofos franceses que escrevem livros e livros sobre ideias que se resumem em um parágrafo apressado. Invejo mais os ingleses e os alemães, mas esses não vêm ao caso. Esses franco-pensantes pegam as ideias e as esmigalham, embaralham, amassam, tratam-na como massa que virará pão, torta, comida para a mente de outros. As minhas ideias, essas diabas, não me deixam com raízes para que eu as trate de forma justa. Minto. Talvez a única forma justa que exista para tratar as minhas ideias seja a de deixarem-nas escapar através de um comentário, uma dica ou um desejo devidamente reprimido.

As minhas ideias – ladinas, furtivas, esquivas – não devem ter muito valor mesmo. Valor algum, já que trabalho não gosto de ter com elas. Não sei se é isso mesmo. Minhas opiniões valem menos que nada e ainda assim trabalho-as impunemente há anos. Talvez seja apenas desprezo por aquilo que eu seja capaz de fazer. Talvez eu me ache incapaz de criar propriamente ou de dar forma a alguma coisa mais consistente que a merda lançada no esgoto. Mesmo essa é normalmente o fim do trabalho da ideia e do esforço dos outros.

Taí. Minha opinião sobre o tudo é sempre fruto de uma digestão das ideias alheias, dos fatos externos e do mundo que, por definição, é tudo o que não sou. Dou trabalho ao que não é meu, ao que não sou e com isso deixo passar as coisas que aparentemente são minhas, minha sombra, meu reflexo ou pegada.

Vou além. Acho que sou incapaz de ser. Se fosse, faria-me. Já que não sou, como posso trabalhar o que me acontece, o que me ocorre. Só quando me distraio dessa minha não existência é que as coisas brilham. Não é como diamante ou ouro num córrego, mas mais como uma canção entreouvida e não guardamos a letra ou uma imagem que vai antes que peguemos a máquina, esta que é sempre carregada no bolso, essa engenhoca de falar com o mundo.

Me engano. Não é nada disso. Sou apenas enfadonho, boçal e tacanho e ao olhar de frente para as ideias que gero, reconheço-as tacanhas, boçais e enfadonhas. Esqueço-as no momento seguinte para não me envergonhar mas tarde de ter tentado brandir tamanhas cretinices. É melhor assim. Antes um bando de sonhos e ideias e desejos abandonados na sala de cinema, ao cruzar o sinal, no trajeto do ônibus, na água que se enxágua, na descarga que leva a merda, no papel sujo que encacetear a moça cheia de compras até o seu andar do prédio. Deixo a moça subir só. É melhor e já me atraso para o meu esquecimento.

Fantasias carnavalescas

Passava por uma fase apática, de conquistas pífias; não se interessava pelo trabalho: achava que tudo era sem importância, sem relevância para si e para A Empresa; as mulheres ou lhe deixavam a esperar ou não causavam espécie, desinteressantes, desimportantes; os porres inócuos, mal lhe davam a dor de cabeça do arrependimento; na casa, largada ao tempo, cresciam fungos nas paredes.

Voltou de sua rotina estapafúrdia cansado da vida, esperando encontrar abrigo na irradiação vinda de uma tela OLED ou de algo que o levasse para uma condição mais morna de existência.

Chegou em casa, largou a pasta em cima da cadeira de sempre, ligou a televisão, procurou um arquivo na sua coleção de filmes antigos, lascou um “Era uma vez no Oeste” de dentro do bicho e foi tirar gelo do congelador. Adicionou água e uísque, sentou-se no sofá, retirando os sapatos com desprezo. Olhou mais uma vez para a infiltração de estimação que vinha do teto da cozinha para a sala e se prometeu, mais uma vez, que iria ligar para um arquiteto, um bombeiro, para o exército da salvação, qualquer um que pudesse resolver aquilo. Estava começando a afetar a sua saúde. Aliás, já era efeito do álcool ou tinha um rosto naquela mancha?

Assistiu o filme com indiferença. Desligou a tevê. Largou a garrafa vazia para o lixo, o copo para a pia, as meias para a máquina de lavar e os sapatos para a janela. Voltou para a sala, escolheu mais alguns filmes para baixar, arrumou os recém-chegados em suas coleções e foi para a escrivaninha. Pegou o pendrive com o serviço que trouxera do trabalho, ligou o laptop e copiou os arquivos.

Trabalhou dez minutos e perdeu-se na internet. Seis horas depois desligou o micro, saciado.

Acordou mais miserável que o dia anterior mas menos que o seguinte. Tomou banho, masturbou-se, enxugou-se e vestiu uma roupa nova que era tão igual quanto as antigas. Saiu de casa pensando na sexta-feira próxima e nas compras da semana. Pensou no cartão de crédito, na conta de luz, de gás, de telefone, aliás, os dois telefones, na conta de tevê a cabo que não assistia e no salário que daria para pagar tudo com folga. Esse último pensamento foi o alento e ânimo necessário para pegar o táxi que o levaria ao trabalho.

Sentou-se à baia executiva, tornou a vida de alguns mais miserável, preencheu mais relatórios, almoçou, fez o meta-trabalho de praxe, retornou à baia, delegou aquilo que não queria resolver ou não achava interessante, esperou pacientemente o horário de saída. Fingiu que tinha mais trabalho a fazer e enrolou mais duas horas para “fazer cena”. Levantou-se às oito e meia e chamou a carona pelo aplicativo a caminho da portaria. Às nove e quinze estava em casa.

Era a vida que planejara anos a fio. Não havia envolvimento ou emoção. Mas o engraçado é que um simples detalhe pode desmontar uma sólida e complexa fantasia. 

Quando mais jovem era um rebelde, um irresponsável. Apaixonava-se a torto e direito, era um poeta louco, ator insano, mas matou essa parte de si para que pudesse ser um outro alguém. Não sabe em que momento essa mudança aconteceu, mas, aos poucos, a chama passional que ele carregava foi apagando. Tinha decidido que viveria um dia por vez, aceitando os favores do tempo da maneira que se apresentavam. Não criaria expectativas ou ilusões. Matou seus sonhos um por vez.

Só que o destino sempre tem cartas desconhecidas nas mangas.

O acaso é um deus caprichoso. Ele ronda as pessoas distraídas e faz ressuscitar sonhos, emoções ou idealismos que achávamos domados e contidos. E não tem muita regra. Pode ser um sorriso de soslaio, um textinho no jornal ou uma amiga que chama para tomar um chope. Tudo pode ser razão e motivo para que o milagre da regeneração se manifeste.

E sonhos, mesmos os que já são cadáveres, insistem em retornar. Principalmente aqueles que reforçam as crenças-base de cada um. Basta adicionar água e jogar uns grãos de trigo que eles germinam rapidamente. Kobolds também fazem o mesmo. No caso, bastou um sorriso sincero, um facho de Sol na cara, um verão mais ameno e a cidade que lhe abraçava com mais carinho que da primeira vez. Os sonhos vieram com força total, sem inocência, e ele se prostrou a todos os seus desmandos.

No fim das contas, ele estava  pagando por todo o seu jeito blasé.

Em seis semanas despediria-se do emprego, do cárcere, da segurança de acordar no dia seguinte. Anunciava-se o Carnaval.

Condomínio

A casa da minha alma é pequena. Nela, cabem umas poucas lembranças, um cálice vazio e um farrapo de vontades gastas pelo tempo. A alma ocupa um canto iluminado pelos sóis de inverno. Tem janela para um quintal de grama verde, onde ela pode se deitar e brincar de desenhar nuvens. Por vezes, cochilar na rede que prende às paredes. É onde ela se lembra de onde veio e para onde irá.

A casa dos meus sonhos é um campo aberto. Não é casa ou teto, mas horizonte infinito, sol a pino e nuvens escarradas no ciano cinzento. A casa dos meus sonhos tem um vazio ensimesmado, um nada indefinido, uma ausência de ser. Ela se insinua, mas inexiste. Como um desenho abandonado. Ninguém mora lá.

A casa dos meus desejos é um pássaro migratório. Mora em calendários, pousa em meses, cria ninhos em semanas, cisca nos dias, come nos feriados vermelhos. Ele existe no ir e vir, sempre em movimento. É filho das horas e das efemérides. Eu o alimento com os segundos que roubo do relógio.

A casa do meu futuro foi erigida em nuvens sem pé de feijão. Ela é feita de desenhos animados e de cores acachapantes. Os amigos do futuro são caricaturas de gente e eu os conheço vidas a fio. Eu acredito em suas histórias que me são enviadas em cartas de tarô. Desenho a casa em mapas astrais e traço seus contornos em trígonos, quadraturas e sextis.

A casa do meu exílio tem verão todo dia e inverno para o sono. Tem uma cama quilométrica e uma rede com paisagem de concreto e luzes. Uma lua safada me visita quando chego do trabalho e me ilude com promessas de carinhos. O exílio não é local de carinho.

A casa do meu trabalho é vizinha da alma. Sólida como chumbo, negra como o medo, fria como o beijo de quem não te ama mais. Não tem portas. Não tem janelas. Não tem saídas. Ela é carregada como um casco, uma corcova de gente. Meus dias se passam ali dentro. Algumas noites também.

A casa da minha mãe tem a mãe da mãe e a filha do filho. Já teve minhas lembranças, meus prazeres e o meu acalanto. Hoje tem conversas e uma longa espera pelo fim. É uma casa de cura, ainda que essa venha de forma inesperada. É onde podemos dormir à tarde e sabemos que alguém nos guarda à porta. Ninguém fica com fome na casa da minha mãe.

A casa da minha esposa tem o meu nome prometido e a promessa de um futuro. É feita de paredes arranhadas e a derradeira tentativa de felicidade. Sair dali é entregar-me àquilo que não quero mais ser. Toda semana parto com a esperança de retorno. Toda semana volto com a esperança de ficar.

A casa das minhas casas tem chaves gigantes, seis cores de duração e uma sombra eterna.

Vícios

Eu sou um dependente. Dependo fundamentalmente de algumas coisas para funcionar com tranquilidade: água, comida, ar; afeto, segurança, teto; rotina, função, destino; paixão, atrito; conflito. Sem esses elementos, meus dias ficam vazios ou inviáveis. Há hora e momento para desfrute de cada um deles. São necessidade, vícios, e prazer. Cada um.

Mas cada um cobra o seu preço. O mamute não chega morto na minha mesa, assado e temperado. Alguém precisa sair para caçar a pizza e exibir sua carcaça ao clã. As batalhas precisam ser lutadas.

Já tive minha fase de procurar discussões e conflitos. Está na minha natureza ariana essa busca pelo calor do atrito. Isto é o exercício de algo indelével em mim, é inexorável, inevitável.

Mas um bom guerreiro sabe quando a batalha é boa e vale a pena ser lutada e também sabe que precisa estar pronto, armado e armaduras para s guerra, antes de tudo.

Eu penduro o escudo, a espada e a armadura diariamente e me vejo sem máscaras no espelho. Encaro uma pessoa cansada que perdeu a noção da batalha, o sentido de acordar todo dia e encarar o ciclo de enfrentamentos, de disputas por espaço, das conquistas por metas percentuais e redução de despesas mas que, de alguma forma, a despeito do cansaço que devora, veste a loriga, monta no corcel de guerra e sangra sua parte novamente.

 

Linha 433

Levantou-se. Na pia: barba, cabelo, remelas de olho. Privada e banho rápidos. Roupa arrumada de ontem. Café da manhã corrido. Jornal debaixo do braço. Cinco da manhã. Elevador, lances de escada, portaria. Olá pro porteiro. Ponto de ônibus. Pessoas mudas nesse horário. Minutos nervosos até o 433. Sobe. Paga. Senta. Janela do lado direito do ônibus. Cabeça encostada, a paisagem repetida da Nossa Senhora de Copacabana. Avenida Princesa Isabel. Coração um pouco apertado. Falta pouco para a amada. O amado. Tanto faz. Túnel Velho, Rio Sul. Coração na boca. Lá está.

Chovera na madrugada anterior e o céu ainda estava cinza. Era o cenário preferido dele. O amanhecer anunciado no horizonte, pintando de laranja, vermelho, amarelo e violeta as diversas matizes de gris da noite anterior. Mal conseguia conter o sorriso bobo ao ver o mar batendo lânguido na areia suja da praia de Botafogo. Ondas pequenas, espumas miúdas, repetidas, lentas, preguiçosas, gordurosas, imundas.

No espelho d’água, os barcos ancorados eram como enfeites num bolo de aniversário que teima em não ficar quieto: uns ainda no repouso, outros voltando da pesca, davam a vida que parecia estar congelada esperando o momento do sorriso quente vir do leste. O primeiro bafo de calor em contraste com a hora mais gelada.

Essa chegada era emoldurada pelas montanhas: o Morro da Urca, o Pão-de-Açúcar, as montanhas de Niterói do outro lado da enseada. Testemunhas eternas do espetáculo diário que é exibido a qualquer um que esteja se preparando para a jornada diária. Ou vindo das perdições da noite.

Essa apresentação era o que lhe motivava todos os dias. Sabia que ali renovaria a sua paixão por estar vivo, justificaria cada batida de coração e cada momento mofando dentro do escritório de contabilidade que lhe dava os recursos necessários para ser o espectador premium de cada alvorada.

No fim da praia de Botafogo, antes do ônibus ganhar o Aterro do Flamengo, ele se levantou para descer. Nunca havia feito isso antes. Sempre se contentava em contemplar passivo o amor que recebia em cada onda de luz e calor que o Sol lhe depositava através dos vidros embaçados dos coletivos. Levantou, puxou o sinal e saltou.

Saltou. Areia ainda úmida. Pés descalços. Sapatos na mochila. Meias também. Calça arregaçada. Sorriso no rosto. Beira d’água fria, gélida. Mochila ao chão. Camisa junto. Calça, cinto, carteira, celular. Corpo molhado. Ondas pequenas, espumas miúdas, repetidas, lentas, preguiçosas, gordurosas, imundas. Areia úmida. Cueca cravando no rego. Areia nas dobras da bunda.

“Oi.”

Virou-se para um lado enquanto o outro sentava na direção contrária do olhar.

“Não precisava disso. Você sabe, né?”

“Não pensei em nada. Só quis vir.”

“E me encontrou.”

“Pois é. Não contava, mas esperava.”

“E agora?”

“Não sei o que fazer agora. Tenho um emprego. Não preciso dele, é verdade, mas é cômodo.”

“Eu também tenho. É o que me define.”

“Sei disso. O caminho de Helios, a carruagem, etc.”

Cruzaram os olhares pela primeira vez. Era possível pesar o ar nesse momento.

“Sabe quando os deuses começaram a andar sobre a terra?”

“Não. Não lembro.”

“Quando começaram a invejar os homens. As paixões, os prazeres, o esquecimento, as dores.”

“Istar foi a primeira, né?”

“Sim.” Calaram um bocado. Deram as mãos.

“Por que logo aqui?”

“E existe lugar melhor para nascer que na enseada de Botafogo?”

Ambos sorriram. Beijaram-se. Um colocou as roupas estranhamente já secas e passadas, o outro continuou a sua jornada diária.

“Te espero amanhã.” Disse o que brilha.

“Te aguardo sempre.” Disse o que esmaece.