Affonso Romano de Sant’anna
Nesta hora, num apartamento em João Pessoa, numa casa em Cuiabá, num condomínio em São Paulo ou numa cidade histórica de Minas, um autor está olhando, desolado, um ou mais livros seus inéditos sobre a mesa. E não passa praticamente um santo ou profano dia em que não encontre autores sobraçando livros inéditos e pedindo que os ajude encontrar um editor que se interesse por eles. Dir-se-ia que isto é normal. Não é, sobretudo, quando muitos desses escritores já são autores de um, dois, três, quatro ou mais livros publicados até com alguma receptividade.
Não são, portanto, principiantes. Não são amadores. São pessoas que resolveram dedicar sua vida à escrita. Ou seja, para eles, escrever é uma opção vital. No entanto, não encontram o caminho da publicação. Alguns dizem que enviaram cópias para várias editoras. Ou não obtiveram resposta ou lhes disseram que seus livros são interessantes, mas não se encaixam na linha editorial, etc. Outros, impacientemente, pensam editar o livro por conta própria ou através de uma fundação, mesmo sabendo que a não-distribuição estrangulará a divulgação. É uma situação injusta, estagnante e produtora de necrose na alma. É desolador. Ver dois, três, às vezes sete ou dez livros inéditos em casa, olhar os suplementos, ver outros autores surgindo aqui e ali, enquanto se permanece no limbo como um estranho no ninho.
Entendam que não estou me referindo a autores ruins, iniciantes desarmados para a vida literária. Refiro-me a escritores que têm noção do ofício e já demonstraram competência.
Daí o que chamo de “livros natimortos”. E isto merece alguns desdobramentos analíticos, antes que, tentando abater a dramaticidade da situação, se diga que sempre foi assim e que em outros países ocorre a mesma coisa.
Pena que não guardei, péssimo arquivista que sou, uma reportagem sobre um fenômeno semelhante na França. Tratando de livros que jamais chegarão aos leitores, a matéria, no entanto, referia-se ao fato que isto ocorria porque a capacidade de absorção do público já estava preenchida. (Digamos que seja um pressuposto ou uma conclusão discutível, pois, pelas leis do mercado e do marketing, você cria novas faixas de consumidores mediante a persuasão publicitária). Mas o fato é que lá existe já uma boa rede de bibliotecas, livrarias e um consistente público consumidor. Contudo, o que nos interessa assinalar na diferença entre o que ocorre na França, Alemanha, Itália, Espanha, Estados Unidos, Canadá, etc. e aqui, é o fato de que, no Brasil, essa montanha de livros natimortos seria terraplanada se houvesse mais livrarias e bibliotecas e mais campanhas sistemáticas de promoção do hábito de leitura.
Editores brasileiros alegam que não podem editar tudo o que recebem, mesmo que o material seja bom. E, de certo modo, têm razão. Livreiros afirmam que se lhes dessem de graça os dois mil livros editados cada mês no país, não teriam lugar para expô-los. Outra verdade irretorquível.
Onde estão os nós da questão que afeta a todos nós? Em que nossa situação é mais patética que a dos europeus? O fato é que, no Brasil, existe um vasto espaço cultural e econômico ocioso. Produz-se para uma faixa mínima de consumidores sem nenhum projeto consistente, e de longo prazo, para alargá-la.
Quando dirigi a Biblioteca Nacional, constatamos que não entrava no orçamento dos estados e municípios qualquer verba para aquisição de livros. Pensava-se, creio, que os livros tinham pernas e sairiam andando das editoras para as estantes das bibliotecas por um heliotropismo literário. Havia, então, uns 3.000 municípios sem biblioteca. E, na maioria dos 3.500 que a tinham, a situação era precária. Portanto, é evidente a conclusão: se houvesse um programa de compra de livros pelas bibliotecas públicas, poder-se-ia dizer que todo livro médio teria esgotado sua primeira edição, geralmente de três mil exemplares. O Instituto Estadual do Livro em Porto Alegre, que edita gaúchos, esgota, só naquele estado, as primeiras edições de seus autores. A Fundação Cultural de Blumenau começa a editar os autores locais e distribui-los nas escolas. E felizmente acabo de saber que em Minas começou um projeto para implantar bibliotecas em todos os seus municípios.
Contudo, há um mistério no Brasil. Há mais editoras que livrarias. Quase o dobro. Agora, imaginem se em vez de apenas 1.500 livrarias (a cada hora surge uma estatística diferente), tivéssemos, pelo menos, 20 mil a 30 mil livrarias? Tenho por hábito perguntar, quando estou numa cidade com 100 mil ou 200 mil habitantes, e que tem faculdades e até universidade, quantas livrarias possuem. Pasmem, às vezes, só há uma livraria ou papelaria, o que torna inexplicável o modo como os alunos estudam, mesmo levando em conta as copiadoras.
Portanto, estamos numa situação patética. Um país de autores sem leitores. Um país em que o livreiro não dá conta da quantidade de livros recebidos, não porque sejam inumeráveis, mas porque a perversidade do modelo econômico está na raiz da dificuldade de acesso aos bens culturais.
Há muitas variáveis nessa questão. A globalização agravou o encantamento que nossa alma índia sente diante de qualquer espelhinho trazido pelo colonizador. Seja como for, há uma anomalia no mercado. Em termos econômicos, fala-se de ?taxa de desemprego?, ?força de trabalho? e ?demanda reprimida?. Deveríamos aplicar isto ao universo simbólico. Há um desperdício da criatividade, como se, por falta de estradas e supermercados, estivéssemos deixando estragar lavouras inteiras de soja, café e cacau. Se na ditadura reclamávamos da repressão ao simbólico, na democracia temos que cuidar da demanda reprimida do imaginário dos criadores que, em última instância, reelaboram a força criativa do povo.
Enquanto isto, num apartamento em João Pessoa, numa casa em Cuiabá, num condomínio em São Paulo ou numa cidade histórica de Minas, um autor está olhando, desolado, um ou mais livros seus inéditos sobre a mesa.
Livros natimortos-II – Publicado em 08 de novembro de 2003
Dos mais reveladores é o e-mail de Carlos Trigueiro que, comentando a crônica da semana passada, lá pelas tantas, diz: “Pasme. Nos últimos quatros anos, acertei na quina duas vezes, mas não consegui publicar três originais (dois romances e uma coletânea de contos). E, do jeito que as coisas vão, qualquer dia acerto na mega-sena! Já disse a alguns editores brasileiros que tenho recursos para montar uma ou mais editoras, porém cairia no fenômeno que você bem cita no seu artigo, e, além do mais, preparei-me para ser escritor e n&atild
e;o para editar”.
Ou seja: é mais fácil acertar na loteria que se tornar escritor, social e literariamente, reconhecido. Trigueiro, pelo menos, acerta na loteria de vez em quando. Os outros, nem isto. Brincadeira a parte, sua revelação é intrigante e instigante.
Isto bate com o que Alexandre auto-ironicamente vai dizendo na sua mensagem, ao considerar que já cansou de mandar originais para editoras, por isto pensa que “talvez devesse desistir de escrever e tentar abrir uma pré-agência literária. Seria um local onde avaliaria originais enviando os melhores para as agências literárias. Mas não daria certo. Primeiro porque seria difícil achar uma que levasse a sério minhas avaliações. Segundo porque, se achasse, provavelmente em pouco tempo estaria entupido de originais e teria que começar também a recusá-los, aceitando talvez somente aqueles enviados por uma pré-pré-agência literária cadastrada”. E, dito isto, o leitor-escritor vai explicando que não teria dinheiro para abrir qualquer negócio, pois o que possui não é suficiente “no momento nem para recarregar o cartucho de tinta e conseguir terminar de imprimir as 74 páginas de “A estrada dos andarilhos”. A tinta, vermelha, que é o que ainda tem, acabou na página trinta e quatro”.
Marco Lucchesi, essa alma cosmopolita, comunicou-me que aquela crônica ia “salvar a muitos de se atirar da janela, ou ponte, porque a situação é realmente dramática e quase desesperadora!!!”. Mas Gil Perini, que já teve livro publicado por esses dois heróis da vida editorial Cláudio Giordano e Plínio Martins, além de traçar um pertinente quadro da situação lítero-editorial, lembra que alguém já disse que “todo mundo que lê acha que pode escrever, e um dia teremos um autor para cada leitor, e a Biblioteca acumulará todo o lixo literário do mundo. Talvez, nesse dia, as pessoas receberão ao nascer um livro em branco, que irão escrevendo durante a vida, e que ninguém nunca irá ler”.
São auto-ironias legítimas, permitidas a quem está nessa luta há muito. E o mesmo Gil lembra soluções para o impasse que surgem aqui e ali. Tanto o “micreiro” que com algum rudimento de pagemaker consegue produzir um livro, até aquele senhor em frente à Biblioteca Nacional que vende qualquer livro a dois reais. Mas se alguém quiser ler um deles, basta pagar um real, algo “bem mais barato que uma sessão de cinema”. Ao final, ele se refere a um drama que muitos nem sabem que existe: o livro que morre na segunda edição, o livro que “chorou ao nascer, mas morreu no berçário”. Já Fábio Rocha, na área da poesia diz que resolveu (relativamente) seu exílio de poeta através da internet e com o e-book.
Clivânia Teixeira parte também para a ação, dando exemplo de intervenções “proativas”. Refere-se às rodas de leitura, contação de estórias e formação de hábito de leitura e de pequenas bibliotecas, e cita uma escola que pede de cada aluno dois livros por ano para ficarem na biblioteca: “Não precisam ser novos, basta que estejam conservados para que outras crianças possam lê-los”. Por sua vez, Luiz Faggini diz que se as grandes empresas mantivessem bibliotecas para seus funcionários, já seria uma grande coisa. A idéia tem lá seu peso de verdade, porque está demonstrado que as empresas que desenvolvem programas de leitura com os funcionários melhoram o rendimento e diminuem os acidentes de trabalho.
Já Sheila Soares, bibliotecária e socióloga, lembra que existe um certo desperdício nas ações de compra de livros por parte do governo: “Recebo doações da comunidade de Copacabana, ao fazer uma triagem, num universo aproximado de cinco mil livros, verifiquei que, de cada dez livros desempacotados, seis eram didáticos e pasme- in-to-ca-dos! Imagine isto no país todo. É fácil concluir que o que acontece com esses fabulosos recursos destinados, talvez 60%, à compra e distribuição de didáticos”.
Antônio Olinto, da Academia Brasileira de Letras e responsável pelo setor de bibliotecas da Prefeitura do Rio, conta de suas várias iniciativas criando bibliotecas em comunidades carentes, enquanto, agoniado, lembra que na Zona Norte há imensos bairros do tamanho de cidades sem livrarias e bibliotecas. Mário Pontes, autor, tradutor e editor relata sofridas e esperançosas experiências do Ceará ao Chuí. E, assim, poderia ir citando inúmeros outros e-mails que vão dramatizando a cena cultural brasileira. Experiências e idéias vão pipocando aqui e acolá, tentando minorar as frustrações. O fato é que só conseguiremos modificar esse quadro quando nos convencermos de algumas coisas. Primeiro, carecemos de um projeto sistêmico que a médio e longo prazo desenvolva ações em três direções: o livro, a leitura e a biblioteca. Governo só comprar livros de editoras, não resolve. Editar todo mundo que quer ser editado, não resolve. Desenvolver programas de leitura sem uma rede de bibliotecas e livro, não resolve. As três coisas marcham juntas. E é preciso evitar essa coisa desastrosa que é a descontinuidade administrativa nos órgãos que cuidam disto.
A questão está no ar. Precisa ser discutida. Na imprensa de antigamente dizia-se que certos temas mereciam uma “suíte”. Até quando será mais fácil ganhar na loteria que virar um escritor brasileiro?