O gato

Descanse, Lúcifer, nosso anjo peludo; nosso diabo querido

O ano não tem sido fácil para a família. Vários tios se foram — uns abruptamente, outros em sofrimento — e quem fica olha pela janela os poucos dias que restam. Os filhos da avó diminuem, ficam mais fracos e distantes do presente. O passado é seu futuro, pelo visto.

Lá em casa a gente se segura como dá. O país bamboleia economicamente e a recessão apertou a todos. A filha retorna aos estudos, o filho cresce distante e amado, eu me agarro aos afetos e à rotina. É o que dá norte para as manhãs e esperança à noite. O futuro tenta se fazer presente, mas tá difícil.

O alento que a gente tinha em casa, mesmo nos momentos difíceis, tinha quatro patas e aprontava virando latas, comendo plástico. Era peludo e adorava revezar as camas. Destruiu poltrona e mala que não queria mais, adorava seus arranhadores. Era nossa criança caseira, segundo uma amiga. Pouco miava, parecia um passarinho. Passarinho-cachorro-gambá-coruja, segundo a filha. Recebia as pessoas na sala, pedia para sair para a varanda fazendo manha. Fazia manha para subir na janela. Manha para ir à área. E era uma faísca para fugir de casa pro corredor do prédio, parando na primeira quina.

Adorava armar emboscadas e, quando conseguia nos “capturar”, parava sem saber o que fazer. No início, né? Depois entendeu que era uma brincadeira de pegador e saía em disparada para se esconder. E se escondia como uma avestruz, deixando sempre uma parte do corpo para fora.

Adorava também dar sustos na gente. Ficava nas cadeiras e agarrava as calças e camisas quando a gente passava. Era uma maneira de dizer “ei! To aqui! Olha para mim!”. A gente te olhava, Lúcifer. A gente te olhava muito. E fotografava. E trocava as fotos que tirava quando estávamos longe (ou eu, ou a filha). E chamávamos o outro para ver as posições esquisitas em que você se metia. A gente te admirava.

Você foi muito rápido nas nossas vidas, rapaz. Meu molequinho peludo, ainda sinto tua falta andando pela casa e cabeceando a gente ao pedir carinho.

Agora vamos desmontar tudo que preparamos para você: as aparas de arranhar dos sofás, a caixa de dormir que você nunca usou (e foi tão cara), as tigelas de comida e bebida. As “escadas” montadas em casa para você escalar.

A gente vai guardar os momentos felizes na memória em algum momento, mas agora é muita tristeza que a gente tem para colocar para fora, sabe? É muito choro e saudade. É passado-presente que prepara para um futuro breve.