conceito, forma, comunicação, persistência

o coiote

Os fins são os limites derradeiros e talvez, por causa disso, lidemos tão mal com isso. Nas fitas de cinema, o “the end” indicava as luzes que acenderiam e a nossa ascensão de volta à realidade. Despertávamos da ilusão consentida da história contada e retomávamos à mundanidade com nossa fé no mundo ora realçada, ora destroçada (dependia da qualidade do filme, afinal).

Pode ser ignorância minha, mas, no passado, as histórias – mesmo as que levavam sequências, seriadas – eram definidas principalmente pelo fim e poucas se estendiam em franquias que esgarçavam as essências dos personagens. Os cavaleiros, os heróis míticos, os reis dos tempos imemoriais eram determinados pela inexistência, pelo seu maior limite, pela barreira que todos temem, ao mesmo tempo que superavam as mortes mais pela perpetuação de seus nomes e feitos que pela repetição ad nauseum de histórias que pouco acrescentavam à mitologia. Hoje, tudo busca uma continuação ou um alongamento desnecessário, raso e sem objetivo. A obsessão em prosseguir com personagens, com franquias, séries, livros, de estender uma história até ela virar um fiapo é um desejo de transcendência da morte que me incomoda muito. Especialmente quando esse esticar é feito em empresas, principalmente as de grande porte. Neste caso, os personagens viram projetos, ideias e estratégias que ora precisam de um “choque de realidade”, ora precisam ser aprofundadas no viés conceitual delas.

Nós, ao assumirmos a cadência dos tempos, nos despreparamos para o fracasso, para as derrotas diárias, para as desistências e fins, mesmo sublinhando que cada feito é construído com anos de tentativas e erros, com várias e várias pequenas mortes diárias, preferimos o discurso do vitorioso, do que alcança seu sonho de margarina na vida pessoal e o desejo do herói corporativo no campo profissional. Ou vice-versa. Preferimos louvar a exceção ao invés da regra para transformar aquela nesta e vice-versa (de novo).

Uma vez eu fui “conduzido” a assistir um vídeo corporativo onde uma pessoa — digamos, um sonhador — apresentava seu sonho (de vida!) para um grupo de analistas de investimentos que, em poucos minutos, dizia se o projeto valeria o investimento de centenas de milhares de dólares ou não. Não entro no mérito do processo, eu realmente acho que decisões são – e devem – ser tomadas com anos de preparo, mas instantaneamente, e que protelar uma decisão pode matar uma ideia. Mas o caso ali era outro. Era uma demonstração de irredutibilidade de alguém que acredita num sonho (de vida!) ante pessoas que claramente não entendiam o que estava ali na frente. Não se reconheciam. Obviamente o resultado era uma negativa. E obviamente quem lutava por seu sonho se negava a aceitar o fato.

Notemos que aí temos uma morte definitiva. Aquela chance em especial não se daria de novo. Aquele board de investidores já dera o seu não categórico, independente da capacidade do outro aceitar a decisão. Todos estavam certos, cada qual à sua maneira. Um ceifava, outro enlutava-se.

O erro foi apresentar esse fim claro, óbvio e ululante como “falta de flexibilidade”, como se ser flexível fosse evitar a morte do sonho (de vida!), o fim de um conceito. Como se o outro, aquele que submete aos sábios, devesse de fato abrir mão de sua luta, do bom combate. Quem me apresentava o vídeo não teve a sensibilidade de ver uma coisa tão rara nos palcos corporativos: um propósito saudável e concreto em si mesmo.

Quando temos um conceito, um propósito claro acima de tudo, não interessa se vamos receber bilhões de dólares ou de nãos enfileirados, mas se somos compreendidos na essência. Neste ponto cabe a flexibilidade. O seu patrono, mecenas, patrão, pode não entender o que você fala, o jeito como você demonstra seu conceito, e aí sim vale a pena entender com quem você conversa para adequar o discurso ao conceito. Nunca o contrário. Porque o mundo já está cheio de conceitos esvaziados por decisões coletivas sem fundamento. Projetos feitos toscos por conta da miopia corporativa e que são colocados no mercado de pensamentos. Defender uma boa ideia em um board é questão de convencimento, sedução e assertividade. Mas defender uma má ideia é idem, idem e idem. Nada separa o joio do trigo no espetáculo empresarial.

Até aqui parto do pressuposto que a ideia é boa, que é um propósito virtuoso. O outro lado da moeda é bem simples: se sua ideia não se sustenta ao escrutínio — principalmente de quem entende do assunto — melhor voltar à mesa e reformular tudo, ou mesmo aceitar o definitivo the end. Não há demérito algum em errar e zerar tudo o que foi feito. Seu projeto de foguete feito aos cinco anos não voaria nem com a melhor das intenções. Às vezes é melhor aprender a abandonar algumas causas, nem que seja para retornar a elas tempos depois, com mais musculatura.

Toda ideia, conceito, projeto precisa de um ciclo de amadurecimento, como se fosse o prenúncio de sua jornada. Elas precisam ser apresentadas ao seu público e ser desenvolvida com uma devida profundidade, de acordo com o grau de tensão que ela suporta ou descartadas solenemente se não sobreviverem ao processo, sem dor ou vontade de perpetuar o que já não funciona mais.

Eu falo de forma, de comunicação e conceitos, mas acima de tudo de persistência. Persistir ao convencer, ao seduzir, ao repensar, ao escrutínio e até mesmo à morte. Falo tudo isso para dizer que alguns filmes não merecem uma continuação e que outros deveriam ter uma hora e meia a menos para serem considerados ao menos como bons.