Dando nomes

contém indireta

Restabeleci contato (bem capenga, mas é contato ainda assim) com um dos amigos mais antigos que me lembro. Nos conhecemos há mais de quarenta anos e seguimos caminhos diferentes desde o fim do ensino médio. Mudei de prédio, entramos em faculdades diferentes, frequentamos círculos distintos (apensarmos de termos os mesmos hobbies) e nos separamos. O engraçado é que pontualmente abria-se uma ponte entre mim e ele para trazer o passado à tona. Ou um amigo que era o padrinho dos filhos, ou outro que era padrinho de casamento, ou outro que havia trabalhado com ele em vários lugares diferentes. Mas isso é coisa do Rio, que é um grão de gergelim.

Quando criança, eu adorava ficar lendo os livros do pai desse meu amigo. Ele tinha uma coleção enorme da revista Planeta, principalmente os anuários com os melhores artigos dela. Muito do que aprendi/uso sobre terror e “magia” veio dali. Alguma coisa que aprendi depois — formalmente — com o rótulo de antropologia e sociologia também veio dessa fonte. Ao menos é o caminho que minhas sinapses faziam para dar sentido àqueles conteúdos.

Uma das histórias mais legais que me lembro de ter lido era a da magia ritual “iconoclasta”. Ou seja, como a destruição de um ídolo era usada para curar uma pessoa, uma tribo, o tempo, a colheita. As pessoas gastavam uma energia enorme construído essa imagem detalhada do inimigo que iria ser queimado, espancado ou apedrejado para que, no fim do processo, os males coletivos fossem espiados. Não é diferente do que fazemos hoje com as fogueiras de São João (quem da minha geração nunca “queimou uma bruxa” de papel?) ou no sábado de Aleluia, ao enforcar o Judas. Mas essa história era especial.

Peço desculpas antecipadas ao leitor porque faz quase quarenta anos que li essa história e tudo dela me foi perdido, menos o que relatarei.

Havia em certa tribo de algum país da África Subsaariana um surto de uma doença tropical (talvez tifo, talvez malária; provável o segundo que o primeiro) e que não estava sendo erradicada de forma alguma. Os médicos voluntários não conseguiam curar os enfermos e os feiticeiros não conseguiam fazer suas mágicas funcionarem. Um dos médicos narrou que, certo dia, um desses feiticeiros — talvez o mais sábio deles — pediu para ver o “demônio” que estava possuindo as pessoas. Ele — também demonstrando certa sabedoria — pegou um microscópio e mostrou a bactéria. O bruxo agradeceu e fez um modelo em barro do que havia visto. Chamou a tribo em volta de uma fogueira. Falou suas palavras mágicas e “matou” o demônio. A história dizia que os doentes passaram a melhorar depois disso, mas não ligo A com B neste caso. Mesmo com a medicina de mais de cem anos (ainda era da época da África colonial inglesa), acho que os procedimentos de alimentação, higiene e atenção fossem mais eficazes que a queima de um modelo de barro.

Só que não era a cura dos doentes o ponto do texto. Ele seguia com identificação do mal. O dar os nomes ao que está de errado. O revelar para expiar e curar. Mesmo por um processo que precise de um microscópio para ser identificado. É dar o nome ao que está errado para o que é errado. Porque enquanto não se dá o nome ao demônio, ele continua assombrando. Enquanto não se queima na fogueira o que está errado de fato. Ele continua matando, trazendo pobreza, miséria e doenças.

Quando estamos numa posição de gestão, não deveríamos ter medo de deixar as coisas às claras. De dizer que A é A, que o erro está errado, que o mal é esse ou aquele. Tampouco deveríamos ter medo de mostrar o microscópio da doença, de exibir os detalhes do problema que está acontecendo. A falta de visibilidade e de transparência é sempre fatal para os organismos, especialmente para aqueles que precisam se fiar em sua confiabilidade, na confiança de sua governança. Esconder, negar o que está claro e fugir do óbvio é ruim para o todo.