Desencontro v.2.0

Te esperei até às luzes da noite.
Meus olhos cerram com a chegada da outra.
Você, que ia me despertar a noite inteira, cala.
É surda aos meus apelos roucos.
E agora não quer mais ouvir ou ter em mim um sonho.

Não te encontro.

Na terra do nunca

nunca mais chapinhei nas poças recentes à terra
nunca mais olhei os doces pelos vidros da padaria
nunca mais sonhei em ter os brinquedos embalados
tampouco brinquei imaginário, sozinho, no meu quarto

quer dizer

passei a cambalear rente às sarjetas dos bares
bebi todo tipo de veneno, saudando suas virtudes
comprei mulheres de todos os tipos, de carne e papel
e mantive mudo meu imaginário, sozinho, no meu quarto

no mínimo | Augusto Nunes

14.Set.2003 | Jovens jornalistas em busca do primeiro emprego devem percorrer o caminho das pedras apontado por Paulo Francis: escrever um bom texto e entregá-lo ao editor mais próximo. Conheço vários profissionais em cargos de chefia que não me surpreenderiam se começassem a rasgar dinheiro. Nenhum deles se atreveria a rasgar um bom texto. É mercadoria que vale muito, sobretudo nestes tempos de aguda escassez de talentos.

Um bom texto jornalístico precisa contar com clareza, em Português sem erros, uma história bem apurada. A receita parece simples, mas o trabalho de materializá-la exige uma soma de aptidões que não se assimila com facilidade. Só saberá escrever com alguma elegância, quem tiver lido, e muito, desde a infância. Brasileiros não são muito chegados à leitura. Não conheço um só jornalista competente que não tenha lido, antes dos 17 anos, pelo menos vinte bons romances brasileiros. Não são muitos os jornalistas competentes que conheço.

Escrever bem exige carinho pelo idioma: quem atropela a ortografia ou espanca a gramática não merece ganhar a vida lidando com palavras. Não basta, contudo, colocar em seus devidos lugares o sujeito ou o predicado, conforme acreditava o inesquecível general João Figueiredo. Tampouco deve julgar-se pronto para o mundo das redações quem sabe quando usar o s ou o z. Um bom texto é sempre governado por um raciocínio lógico (algo que faltava, aliás, ao general João Figueiredo).

Raciocinar logicamente, ser elegante no estilo e utilizar a palavra exata são ingredientes que se misturam bem. Feita a fusão de tais virtudes, teremos alguém que é quase um bom jornalista. Quase, porque só podem jogar no primeiro time profissionais que sofrem de curiosidade invencível – uma espécie de pecado original dos repórteres talentosos – e, também, saibam manter-se imparciais em qualquer circunstância. Imparcialidade, insista-se, não é eufemismo destinado a camuflar a ausência de emoções. Trata-se da compulsão para perseguir a verdade.

Gente que goste de ler (e tenha lido a tempo obras fundamentais), escreva com correção, tenha curiosidade pela notícia, ame a verdade e preze a decência não terá problema algum para encontrar trabalho. Para gente assim, existem empregos mesmo em tempos tão difíceis quanto os que enfrentamos.

Desencontro

Os olhos que não se cruzam, perdem-se na noite.
Não acham os seus caminhos traçados,
desencontram o destino, se amarram, apaixonados.

A cama de um é o calvário de outro.
Um sonha com o seu espaço ao lado de outro.

Um foi feito para o outro, mas ainda não se encontram
Ainda.

Capítulo 2

Ainda tento me recuperar das dores do passado, que agora me parece distante, inatingível. Mesmo tendo se passado há seis horas, no calar dos lençóis. Você sabe como é. Nós, pequenos seres que tentam ser humanos, nos acostumamos a tudo, ao sol que passa a nascer no oeste, à luz da lua que fica maior e mais freqüente que o sol, invertendo o alto e o baixo e o dentro e o fora. Dormir na sarjeta é freqüente para quem não tem destino ou guarida para a alma e o corpo. Mas esse preâmbulo, esse desperdício de tinta e papel é apenas egotrip do narrador, que se compadece da história dos miseráveis, que se apieda de seus destinos, que inveja a sua altivez e que, no fundo, pouco se importa com o destino de quem não é umbigo.

Horácio era um partido. Não que tivesse perdido o rumo de sua vida, ou que tivesse um emprego infernal ou mesmo que tivesse uma família desgraçada. Trabalhou muito, é certo. Desde pequeno no banco, como contínuo, vendia enciclopédias de noite e cursou a escola por apostilas. Formou-se, abriu sua empresa, vendeu sua parte, abriu outra empresa, vendeu a empresa, entrou numa outra maior, saiu desta, abriu mais uma empresa, dá palestras e consultoria no Brasil inteiro, nesse ínterim deu aulas, casou-se, teve uma filha, descobriu-se diabético, comprou apartamentos, viajou para o exterior algumas vezes, separou-se, casou-se novamente. Este poderia ser o resumo de uma vida completa, mas é apenas o que a vida faz por conta dos homens, parte-se sua essência em diversos pedaços de horas que são, por sua vez divididos nos diversos pedaços de história que, juntos não dão a menor noção de sua tribo, de sua linhagem.

Para começar ele não seria Horácio, ou Luiz, ou Francisco. Ele não teria um nome até se provar digno de um. Seria qualquer coisa, como Moleque, Tiziu, Nenen, Filhote ou outro nome vexaminoso assim. Assim que chegasse à idade, receberia os ritos de seu pai (que não teria morrido quando tinha apenas 15 anos), trabalharia seis verões e cinco invernos na oficina da família aprendendo seu ofício tradicional, como sobreviver no deserto, de saber quando o búfalo da pradaria vem em manada para ser caçado, qual erva deveria colher para curar o corte na perna, como cerzir o tecido da vela e como fazer a própria rede de pesca e, antes de ser declarado homem, com o nome que homenagearia um antepassado, um animal, ou uma dor de barriga do mais velho de sua tribo, aos vinte anos de idade, aprender a construir a própria casa com madeira e junco dos rios.

Tendo em si o conhecimento de todo o seu povo, sendo um homem apto a sobreviver em sua terra sem precisar de outros, ele saberia qual o seu papel no mundo, seria um homem inteiro com a consciência do que lhe reservaria a vida até os derradeiros trinta e poucos anos, quando morreria doente, faminto e sem dentes.

Portanto, na condição de partido, ele consome toneladas de revistas, acumula centenas de livros, dezenas de CDs e DVDs para degustar em sua sala com ar condicionado e espera ativamente a morte nos seus oitenta ou noventa anos bem vividos com todos os seus dentes na boca.

Ana Lúcia partiu-se nos seus vinte anos. Antes disso estudava nas melhores escolas de seu bairro, morou um tempo em minas gerais, com uns tios, por conta de uma história mal contada. Arrumou um emprego, depois outro. Arrumou um namorado, depois outro. Este lhe deu um filho, mas não um nome, e não arrumou mais filhos, ateve-se aos namorados e empregos. Fez uma faculdade, não exerceu a profissão, amou, desamou, encantou-se, desapontou-se, deleitou-se com a vida, embriagou-se com ela, foi atropelada, ficou à beira da morte por duas vezes, aborreceu-se com o filho, orgulhou-se dele. Viveu da melhor forma possível e espera juvenil a idade e o fato que nivela a todos.

Se não fosse partida, teria uma vida plana, nasceria, cresceria, teria as obrigações da fêmea que seria pouco educada, adestrada para a mudez do fundo da sala e para a cozinha. Se fosse de personalidade, comandaria empregadas e talvez conseguisse um marido rico e bom, teria 2,4 filhos, cachorro ou gato, casa de três quartos, seria formada em pedagogia ou em letras e se resumiria à casa e aos filhos. Teria uma vida tranqüila e esperaria, resumida, a morte do seu marido e a pensão que o marido lhe deixaria. Seria boa mãe. Boa esposa. Boa dona de casa. Boa patroa. Boa mulher. Boa morte. Seria chorada e lembrada pela família (5 filhos, seis netos e doze bisnetos). Os amigos de infância e juventude fariam elogios de suas próprias tumbas, a sua conduta e sua lisura seriam lendários entre todos os habitantes do cemitério Santa Maria de Muriaé.

Após sua partida, o marido sem saber o que fazer, choraria durante doze dias e noites e morreria de desidratação no décimo terceiro dia. Estava agora partido. (incompleto)

ensaio

Tinha a certeza de um sonho, de um desejo
quando se fez carne, o sonho, o querer,
desmanchou-se em água e cal

Tinha as dúvidas da vida, do todo
quando se revelou, o mundo, a vida,
caí em prantos sem testemunho

Não tenho nem sou mais
dúvida ou certeza
vida ou sonho
castelo ou chão

Respiro o ar do dia, do meu jeito.
um. inspiro
dois. expiro o meu tempo.
e os dias passam
somam-se em semanas, meses, salário e ano.