Que 2008 tenha exatos 366 dias

Pois é de seu direito, como ano bissexto, de tê-los – cada um com um nascer e pôr do sol – e que cada em cada dia seja respeitado o direito cósmico de se ter vinte e quatro horas e que cada hora tenha apenas sessenta minutos.

Já faz tempo que insistimos em ter mais horas que o dia nos dá, mais dias que as semanas comportam, mais semanas que os meses e mais meses que o ano. E cada hora dessas que insistimos em multiplicar diariamente tem de ser cada vez maior e mais extensa, transbordando os sessenta minutos que tradicionalmente lhe cabem. Sem falar nos “minutinhos” que insistem em se transformar em centenas de segundos a fio.

Então esse é o meu desejo para 2008: que saibamos respeitar os limites do tempo e saibamos viver cada minuto, cada segundo da melhor forma possível e não inventemos mais atividades para cada hora que nos tire o sossego e o bater compassado do coração.

Porque cada minuto que se vai, não volta.

Bom 2008 para todos nós com todos os trinta e um milhões e seiscentos e vinte e dois mil e quatrocentos segundos que nos cabem nessa revolução solar.

a casa de sal

publicado na Tribuna da Imprensa

Ando pela cidade debulhando sonhos. No flanar entre os prédios, acordo cada um deles como pesadelos em sobressalto e provo a tessitura ofegante das paredes invisíveis ao meu redor. A realidade é estranha aos meus sentidos e, apesar disso, cerca-me, tolhe-me e norteia, apesar do meu não-querer. Não reconheço ali, nessas muralhas erigidas pelo alheio, o amor, carinho, amizade, conforto, alento ou realização dos despertos. Não entendo os seus desejos de sucesso, grana e poder.

Meus sonhos são bem mais simples.

Eu insisto em acreditar em carros voadores e em três horas de trabalho diários que dignificariam o homem do futuro. Queria eu ser esse homem do futuro, ser do mesmo jeito que me foi prometido um dia. Ter uma casa que voasse e férias em Vênus. Robôs que limpariam os quartos e me passariam as roupas e toda essa parafernália infantil. Eu sonhava com essa vida de preguiça e deslumbre com o próprio homem.

Decido, num espasmo de consciência, fazer uma casa só minha. No meio da cidade, entre os espaços do asfalto e do concreto que racha com o calor tropical. A minha cidade que abriga, nutre e castra. A minha cidade que tem o horizonte tapado pelos sonhos empilhados de vidas fragmentadas. A minha cidade que faz suar e chorar.

A minha casa será feita de sal. Do sal que verte das lágrimas dos frustrados, dos desiludidos, dos conscientes, dos desamados. Do sal que é extraído do suor dos competentes, dos esforçados dos jovens que ainda alentem as esperanças da vida e do porvir. Do soro dos que pensam, dos que sonham, dos que ainda gozam a vida que resta entre o ir e vir e o descanso injusto.

De cada quinhão desse sal, forjo tijolos. E cada tijolo tem um nome de amor perdido, de um sonho desfeito ou de projeto malogrado. Cada tijolo é uma alma remoldada e que grita pela vida que poderia ter tido, mas abandonada pela torrente inexorável da vida. Cada tijolo é um grito. E a cidade que guarda a minha cidade de sal berra em uníssono com ela.

Cada tijolo monta a parede da minha casa de sal. Cada parede, um clã que encontra ali a materialização de seu desespero atávico. Cada esquina, cada canto de sala, um lamento do que nunca será, por conta da vontade alheia. Por conta da falta de força de caráter. Por conta da falta de tesão consigo próprio.

Cada demão de tinta nas salas, nos portais, nas janelas e nos vitrais será de sal.

Sal tirado das placentas dos natimortos, sal tirado do vômito dos iludidos, sal extraído dos corpos dos que ficam pelo caminho. E nós passamos – não negue! – sem nos abalar por esses perdedores que só servem para reforçar a nossa pífia e medíocre jornada pessoal.

O que seria da minha casa sem os que caem pelo caminho?

Pois desses, tiro o couro – que vira cortina, coberta, tapete e estofo – e tiro os ossos – que viram alicerce, umbral, rodapé e porta – e tiro os órgãos – que viram móveis, eletrodomésticos e enfeites de luxo que me decoram a parede de sal e bile.

O que seria de minha cidade se cada tijolo de sal não cobrasse o seu quinhão em suor, lágrima ou desamor?

Manhã

publicado na Tribuna da Imprensa

Nasce o sol.

Sento-me, com esforço, à beira da cama desarrumada, desfeita e ainda úmida da atividade noturna intensa. Das oito horas de sono que a constituição me garante, parece que usufruí menos de cinco minutos. Confiro o relógio. Há doze jazia no leito. A cama, rente ao solo, não permite que as pernas pousem confortavelmente no chão. Volto a deitar-me só. Eu e meus outros eus.

Dobro-me por sobre o meu ventre. Ajoelho no colchão como se pagasse as promessas das vidas alheias. Como se me submetesse a um rei invisível, uma entidade superior e impossível de ser ignorada. Ajoelho-me, tremo, suo como se tivesse corrido a mãe de todas as maratonas. Curvo-me mais, como se fosse possível atravessar as barreiras de carne, pano, madeira, tijolo e cimento que se projetam à minha frente. Que barreiras?

Não há nada sobre meus ombros mas sinto o peso do mundo a vergar-me. A pressão de centenas de vidas, uma dor ancestral, um sofrimento atávico, faz com que eu me humilhe e peça, entre lágrimas que descem sem censura, que tudo acabe logo. Que se encerre esse sofrimento, essa laceração da alma. Que haja um fim, por fim.

Mal entendo meus próprios pensamentos. Tudo que me vem é o meu eu que, de multipartido, se reúne para socorrer minha sanidade. É como se todo o meu corpo falasse ao mesmo tempo. Todas as partes de mim que, diariamente são mudas, agora berram, suplicam a atenção do mundo. Meu corpo fala e a mensagem que carrega não é bonita

O coração ressoa tão alto que se confunde com o meu resfolegar. Sinto-o no pescoço, nos pulsos, na dobra de minhas pernas que começam a se enrijecer e a ficar dormentes. Sinto-o no ventre: no estômago que pinga o ácido venenoso que faria Loki arrepender-se dos pecados contra os Aesires; no fígado que se recusa a regenerar-se e me lembra dos excessos da vida libertina que eu tentei – inutilmente – impingir a mim mesmo por essas décadas a fio; no baço que simplesmente dói a troco de nada; nos rins que me lembram de suas pedras e das refeições hiper-temperadas que comi por todos esses anos; na bexiga que se contrai e faz arder a urina que excreto; nos intestinos que se revoltam e disparam gases e me lembram do que tenho de mais puro e límpido dentro de mim. Sinto-o na gordura do meu corpo, na pele, nos músculos retesados, na fronte do meu rosto, no tremor das minhas mãos. Ele bate como se quisesse pedir demissão do cargo. A caixa peitoral não o contem mais e explode a cada minuto, explodindo em sangue, ossos e pulmões. Confiro, desesperado, se o diabo continua lá. Infelizmente, sim.

Súbito, a agonia se vai e consigo arrastar-me até a sala. Espero hora e meia e durmo no sofá que me recebe como mãe carinhosa, acolhendo e confortando. Ao acordar, o sol já se pôra novamente e o telefone me convida para a vida que multiplica a minha. Estou inteiro, operacional, e já penso nas máscaras que terei de usar àquela noite. Nos sorrisos que desfilarão na minha boca, nas expressões que aprendi a modelar na minha cara para atrair os meus dessemelhantes. Haverá álcool, sexo e música e eu serei mais um ator dessa vida de entretenimento. Antes de voltar para casa, serei centenas de pessoas, compartilharei momentos das minhas vidas e das de outros. Contudo, só reconhecerei no espelho aquele que suava, esperando o último suspiro ressacado.

A dor é a única coisa que traz o homem para a sua unidade.