Rotina

Como decorar o corredor principal de casa.

1

Alguém bate na porta três vezes e olho pelo visor. Deve ter sido impressão minha ou ando ouvido coisas. Ou ambos. Aproveito para lavar as louças ao passar pela cozinha. Quatro pratos. Quatro jogos de talheres. Quatro… não: cinco copos. O fogão continua sujo. Amanhã eu limpo. O gato passa por mim e me arranha. Preciso trocar a areia dele. Preciso comprar comida. Volto para a sala e a mesa está arrumada. Mal arrumada, claro. A casa, vazia. Apago as luzes. Cama.

2

Três batidas na porta. Leves. Como se alguém quisesse chegar junto. Abro a porta sem olhar pelo visor. Ele está do outro lado do corredor. Sentado. Encocorado e encostado na parede. Mal olha para mim, mas sabe que estou ali e que abri a porta. Vejo a pia da cozinha. Aproveito para lavar as louças. Quatro jogos de talheres. Cinco copos. O fogão sujo que será limpo amanhã. O gato passa por mim e me arranha. Preciso trocar a areia para ele. Preciso comprar comida. Há quanto tempo não troco? A sala continua vazia e a mesa, mal arrumada. Apago as luzes. Vou pra cama.

3

As batidas na porta. Três. Tem alguém ali. Abro a porta e o senhor está do outro lado. Ele me olha dessa vez. Me reconhece. Eu não. Sabe que estou ali. Pego o lixo e passo por ele. Volto para casa. Ele ainda me encara. Fecho a porta. Olho pelo visor. Ele não está mais lá.  Entro na cozinha. As louças me esperam para serem lavadas. Também os talheres. E os copos. O fogão continua sujo (é ferrugem aquilo?). O gato passa por mim e me arranha forte. Preciso trocar a areia. Cadê comida do bicho? A sala continua vazia, vazia e a mesa sem ser posta. Apago as luzes. Vou pra cama.

4

Abro a porta antes das batidas. Ele está lá. Me olha. Me encara. Fala.

— Toda memória é um fantasma.

Não reconheço a frase. Pego o lixo e coloco no depósito do corredor. Olho em volta. As paredes não me reconhecem. Nem eu a elas. Só me lembro da porta, da cozinha, dos pratos, dos talheres, dos copos, da mesa posta, do gato que arranha e que está morto, da sala vazia e da mesa abandonada. Volto pra casa. Vejo a cozinha. Os pratos, os talheres, os copos e o fogão me aguardam. O gato quer me arranhar. Ele arranhou muito, muitíssimo, mas parou. O fogão sujou com a gordura dele, com a água que transbordava. Doze meses trancados. Só havia a casa, o velho e o gato. O gato arranhou muitíssimo. Era o último deles. O velho foi o próximo. Os pratos ficavam mais difíceis de serem limpos. Os copos cada vez mais vermelhos e dificílimos de serem lavados. A mesa já abandonada. Os outros três (quem eram, minha gente? quem eram?) também. Cadê a comida? Seis meses? seis anos? quanto tempo levou? A gente não via mais a rua. A gente? Eu não via mais a rua. Só a porta, a cozinha, a cama e a sala vazia. Apago a luz. Cama.

5

Três batidas.