Quelqu’Un M’A Dit – Carla Bruni

Sou eu que estou cada vez mais coração mole ou essa música é mesmo uma graça?
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(C. Bruni ‘ L . Carax / Carla Bruni) 2’45
Guitars, piano and string arrangements: Louis Bertignac
Copyist and violin: Léna Fablet
Viola: Roselyne Macario
Cello: Vincent Catulescu
Double bass: Laurent Vernerey
Percussion: Steve Sheehan

On me dit que nos vies ne valent pas grand chose,
Elles passent en un instant comme fânent les roses.
On me dit que le temps qui glisse est un salaud que de nos chagrins
Il s’en fait des manteaux pourtant quelqu’un m’a dit…

Refrain
Que tu m’aimais encore,
C’est quelqu’un qui m’a dit que tu m’aimais encore.
Serais ce possible alors ?

On me dit que le destin se moque bien de nous
Qu’il ne nous donne rien et qu’il nous promet tout

Paraît qu’le bonheur est à portée de main,
Alors on tend la main et on se retrouve fou
Pourtant quelqu’un m’a dit …

Refrain

Mais qui est ce qui m’a dit que toujours tu m’aimais?

Je ne me souviens plus c’était tard dans la nuit,
J’entend encore la voix, mais je ne vois plus les traits
“Il vous aime, c’est secret, lui dites pas que j’vous l’ai dit”
Tu vois quelqu’un m’a dit…

Que tu m’aimais encore, me l’a t’on vraiment dit…
Que tu m’aimais encore, serait-ce possible alors ?

On me dit que nos vies ne valent pas grand chose,
Elles passent en un instant comme fânent les roses

On me dit que le temps qui glisse est un salaud
Que de nos tristesses il s’en fait des manteaux,
Pourtant quelqu’un m’a dit que…

Refrain

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Um país cafajeste – Xico Vargas

Eu tive de copiar esse texto.

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27.03.2006 | O choque causado pelo samba da deputada Ângela Guadagnin no plenário da Câmara não se deve apenas ao grotesco da cena ou à comemoração pela pizza que saía do forno com a absolvição do petista João Magno. Para quem esteve distraído esses anos todos, é só olhar no espelho por trás dessa patética coreografia. O Brasil que dali emerge tem o retrato de um país cafajeste. Esse é o motivo do pasmo e, por triste que seja, não chega a ser surpreendente. Ao semear tanta perplexidade a deputada talvez tenha prestado um serviço à nação.

Menos de 24 horas depois do balé da deputada o presidente Lula, em mais uma etapa de sua campanha ainda-não-sei-se-sou-candidato, revelou que pouco se lhe dá se o ministro Palocci maracutou ou deixou de maracutar com a quadrilha de Ribeirão Preto. “Vou cuidar dele como de um filho”, disse. “Como se fosse pai e mãe dele”, explicou, com a paciência dos estadistas. Nada mais claro. É o amor incondicional, como o que escraviza mães de traficantes, de assassinos ou dos mais deslavados gatunos. Na ótica materna, filhos pairam acima das leis.

Idêntico sentimento impulsiona o acima da lei José Dirceu a pedir no STF a anulação de sua cassação. Enxotado da vida pública já foi acolhido num moribundo canto de página onde deita regras para os destinos do Brasil. Logo, logo estará de volta. Por que não? O Supremo é a mesma corte que impediu Francenildo dizer que viu o que viu na colônia de férias da República de Ribeirão Preto, em Brasília, mas não chamou ninguém às falas quando o governo passou a tesoura na Constituição e jogou o sigilo bancário do caseiro no ventilador. Nem a mal-reconhecida paternidade do moço escapou. Edificante isso, não? Mas como resolvemos tudo com metáforas futebolísticas, vamos dizer que o pobre Francenildo levou apenas um tranco.

Pouco importa se a lama já chegou aos joelhos. Interessa-nos que a Bolsa suba, para trocarmos de carro, e dólar caia, para comprarmos quinquilharias, ou decole, para batermos recordes na exportação. O resto é bobagem. Se for falcatrua – e estiver sendo feita hoje – é porque sempre se fez neste país. Ou seja: nem a cafajestice nos é novidade. Realmente, na terra onde o tesouro do partido do governo tem origem obscura, trafega à margem da Receita e vira recurso não-contabilizado para comprar deputados pouco há que nos possa surpreender. Talvez apenas a inesgotável criatividade de Delúbio Soares. Depois de receber 10 anos de salários sem comparecer ao trabalho – uma escola pública – o mago das finanças do PT processou o estado por usar num concurso seu prenome como exemplo de hipotético mau funcionário. Quer uma grana por danos morais o nosso Delúbio.

Mas assistimos a isso tudo com passividade bovina. Somos assim. Adoramos a canalha. Idolatramos os cafajestes desde que os vimos no cinema, durões, espancando mulheres e acendendo charutos com notas de dólar. Fazem grande sucesso na TV os vilões, os ladrões simpáticos, os vigaristas. Por isso espalhamos parentes pelas filas nos supermercados, para chegar ao caixa antes dos otários. Furamos filas de cinema e corremos atrás de bocas-livres. Há quem tenha dinheiro para comprar os mais caros ingressos, mas se ponha genuflexo diante de uma credencial VIP. Sem contar que, por uma guloseima a mais, somos capazes de entregar até nosso lugar no avião a qualquer general que mostre pouco apreço a relógios e civis. Nada, para nós, se compara ao espetáculo do poder sendo exercido. Mesmo que os intérpretes apenas julguem que o detém.

Foi desse jeito, tentando levar vantagem, que construímos o segundo país do mundo no consumo de produtos falsificados. Compramos pirataria pelas esquinas. Não faz muito era grande sucesso no Rio de Janeiro a Robauto, feira de acessórios surrupiados que funcionava nas manhãs de sábado, numa das principais avenidas do subúrbio de Acari. Comprava-se, por exemplo, um som numa barraca e, na do lado, contratava-se a instalação. Dava gosto de ver. Nunca se soube que vendedores ou fregueses tenham sofrido algum tipo de constrangimento. Talvez porque não tenha faltado ao empreendimento a proteção de policiais que, ao final do expediente, botavam no bolso a sua parte nos negócios. Xerifes da mesma linhagem dos que hoje conhecem (e fingem que não) os feirões de drogas existentes na parte baixa de qualquer favela carioca, de segunda à sexta-feira, a partir das seis da tarde. É o grande varejo de cocaína e maconha da cidade. Mostra que os morros consomem drogas cada vez mais e que, se depender dos moradores, o tráfico jamais sairá de onde está.

Se pagamos e aceitamos que a polícia seja como é, por que, nos espantamos com a patética dança de Ângela Guadagnin? As aberrações em ambos não surgiram agora. A deputada exibe há anos o instrumento que prefere na banda. Ou não foi ela, quando prefeita, que demitiu o secretário que denunciou uma roubalheira petista? Não foi ela na CPI que tentou retardar ao máximo todas as conclusões, com intermináveis pedidos de vista para cada relatório? Ora, quando viu ser absolvido o amigo – que tinha o pescoço na lâmina só por ter posto a mão em R$ 420 mil do valerioduto – queriam que a deputada fizesse o quê? Caísse em prantos? Nada disso, mandou a compostura às favas. Como sempre se fez neste país, diria o presidente.

Por que não nos espantamos antes com o elástico conceito de moralidade de Guadagnin? Ninguém estranhou quando ela empregou na defesa dos correntistas do valerioduto veemência idêntica à que aplica para condenar as mulheres da campanha pela descriminalização do aborto. Interromper a gravidez de feto sem cérebro não pode. É a lei de Deus, diz a deputada em defesa da moral cristã. Até aí, tudo bem, cada um que defenda o que lhe é caro. Estranho, porém, que a métrica dessa retidão religiosa não se aplique aos que enfiam a mão na bufunfa. Deve ser porque o caixa 2 não é tão antigo a ponto de alcançar os textos do Livro Sagrado.

Por que o Brasil se espanta que Ângela Guadagnin tenha pisoteado o decoro e, na mesma semana, passa batido pelo escândalo das 10 mil obras dos governos Garotinho? No país que criou um Conselho de Auto-regulamentação Publicitária aceita-se que o casal nos enfie pelos olhos e ouvidos, em vários estados, uma aberração que arrola tratamentos dentários entre obras civis, multiplica praças e quadras de esporte, e vende favelas como programas habitacionais. Por que isso já não nos surpreende? Certamente porque, nos últimos anos, os Garotinho testaram todos os limites, da mentira ao desvio de recursos, e, até agora, só a juíza Denise Appolinária tentou deter-lhes a marcha.

Como Guadagnin com sua dança. Experimentou com ela mais um limite da tolerância nacional. “Foi um ato espontâneo”, disse a deputada. Pronto, está justificado. Afinal, como não admitir que políticos em geral embolsem dinheiro público se o país inteiro sabe que a polícia o toma diariamente da platéia pelas ruas? E os prefeitos que fazem acordos com milícias que controlam favelas? E os juízes que vendem sentenças? E os governantes que superfaturam obras e botam no bolso o troco dos remédios dos hospitais? Políticos como Ângela Guadagnin, João Magno, Waldemar Costa Neto, José Dirceu e tantos outros que se multiplicam no Congresso só estão lá porque foram criados a nossa imagem e semelhança. O problema não está neles, mas na nossa insistência em construir uma nação cafajeste. Vem eleição por aí. Podemos continuar com a obra. Ou não.

xicovargas@nominimo.ibest.com.br

Noites de Lua

publicado na Tribuna da Imprensa

“Cara, desencana que do jeito que tá não vai dar certo.” “Mas você não entende? Ela não me ama, eu não me amo, ninguém me ama, ninguém me quer…” “… ninguém te chama de Baudelaire. Eu sei, babaca. Já ouvi essa ladainha centenas de vezes. E tu continua comendo metade do mundo.” “Só a metade desinteressante.” “COMO ASSIM? Você não ficou com a…” “Fiquei, mas ela não quer me ver nem pintado de ouro.” “E com a…” “Também. Mas ela voltou para o babaca que batia na filha dela.” “Mas e aquela menina que parecia que você iria se enrabichar.” “Não rolou.” “Desenvolve.” “Não rolou e pronto. Não subia.” “Putz.” “Pois é. Todas as mulheres interessantes, bonitas e disponíveis se desmancham na primeira noite. Ou manhã. Ou nem isso.” “Não é você que é muito exigente?” “Porra! Até parece que você não me conhece. Não namorei aquela psicopata? Quer que eu faça o rol das mulheres da minha vida?” “Tu é desses caras que anota tudo, né?” “Sou quase uma mulher, cara. Lembro de tudo de cada uma delas. Todos os detalhes. Só o rosto e o nome é que por vezes me escapam.” “Só? E isso é só?” “É sim se você considerar que lembro do cheiro, do jeito que beijavam, do gosto das partes, do que gostavam e principalmente do jeito que gozavam… quando gozavam, né?”

Entraram no boteco já animados após uns minutos de papo desnecessário no caminho de Copacabana até Botafogo. O amigo era um womenizer, um “comedor” em bom português arcaico, mas não do tipo canalhão desses que acham que têm de comer o mundo inteiro para provar pro pai, pros amigos e para as outras mulheres que têm algo entre as pernas. Era do tipo que acreditava que a próxima seria a última, seria a paixão perdida, a manifestação da primeira paixão. Só que a realidade era bem diferente, né? Do jeito que costuma ser quando sai do papel e vai para todos os outros sentidos. Pior, o outro time costuma ser tão enrolado quanto o amigo. Pior ainda, ele tinha como dar conselhos para o amigo. Era do tipo casadoiro e namorara pouco na vida. Três casamentos, é verdade, algumas farras nos intervalos, mas nada comparado ao curriculum do amigo. De certa forma um invejava o outro. Quase que gozavam com pau alheio. Mutuamente alheio.

Fazia seis meses que o amigo estava parado com a namoradinha mas parecia que não estavam mais se entendendo direito. Tinha mudado para a casa dela, reformado tudo e tal e tinha planos para filhos e casamento num futuro bem próximo. Se conheceram de um jeito esdrúxulo e cada vez que ele explicava, piorava. Preferia deixar as coisas do jeito que estavam e apenas aceitava que o amigo tinha finalmente um relacionamento estável. Ou não.

“Cara, parece que as mulheres vivem eternamente a síndrome de Grouxo Marx.” “Como assim, cara?” “’Eu não entro num clube que me aceita como sócio.’ Saca?” “Acho que sim.” “Pois é. Quando eu estava carente, elas fugiam de mim como diabo foge da cruz.” “Não exagera.” “Verdade, cara! E agora que estou meio que namorando…” “Meio? Tu tá morando com a mulher!” “…elas ficam me assediando. Me ligam, chamam para sair e tal. Pô! Parece que querem ouvir um ‘não rola, linda, mas tô com alguém’, sabe.” “Acho que sei. Uma amiga diz que todo mundo é homossexual.” “Hein?” “É engraçada a teoria. É algo assim: a mulher reconhece o cheiro de outra mulher no cara, então se atira para ele. Mesma coisa com os homens. Eles sentem o cheiro de macho na fêmea e isso a valoriza no mercado.” “Hahahahah! Puta merda! É verdade! É isso! É tudo veado mesmo!” “Hahaha!”

Fecharam a conta mas o assunto não acabava.

“Como tá o casamento?” “Na mesma. Morno, morno. E acho que é essa a receita dos meus relacionamentos. Não me apaixono, não me envolvo. Aceito a parceria e a companhia.” “Não te entendo.” “Nem eu mesmo me entendo. Às vezes até acho que rolaria de ficar casado em apês separados. Ou camas diferentes. Ou quartos, sei lá.” “Não entendo mesmo.” “Nem é para entender.” “Cara, eu sufoco as pessoas, sabe? Preciso de atenção, de cafuné, de sexo e de olhares cúmplices trocados no meio da noite.” “Quem não quer isso, cara?” “Mas a merda, a grande merda, é que cansa. Vira tolerância o que deveria ser uma puta experiência.” “O projeto de tua vida vira um expediente burocrático. Bate o cartão pela manhã e dá uma fodinha antes de dormir. Sei disso.” “Mais ou menos isso.”

Estacionou o carro para deixar o amigo em casa, na Almirante Gonçalves, em Copacabana. Saltou e ajudou-a abrir a portaria. Bêbado sempre tem uma dificuldade foda para abrir portas e achar chaves. Ao voltar viu que ele esquecera um livro de bolso do Pessoa dentro do carro.

“Taí um bom motivo para marcarmos outro chope.”

Abriu o livro e viu que tinha um cartão marcando o Tabacaria, do Álvaro de Campos. Sublinhado, lia-se:

“Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?/Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!/E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!/Gênio? Neste momento/Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,/E a história não marcará, quem sabe?, nem um,/Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras./Não, não creio em mim./Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!/Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?”

Súbito, o choro do amigo na escada de casa fazia sentido.

TABACARIA – Fernando Pessoa

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê –
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

Dias de Sol

publicado na Tribuna da Imprensa

Foi num domingo que ela tomou a iniciativa de procurá-lo.

Antes disso, tinham se esbarrado nas esquinas dos nós de pessoas que a internet faz. Havia visto uma foto dele ali, um comentário espirituoso acolá. Notou os traços espertos mas não lhe causou espécie. Nunca fora muito fotogênico, o rapaz. Apesar disso algo ficara. Talvez a estranha mania do menino citar H.P.Lovecraft nos tópicos mais impróprios ou a sua fixação em Manhattan, do Woody Allen. Talvez por ele gostar de bandas esquisitas que não emplacaram sucessos ainda na época dos compactos simples ou a estranha mania de defender tanto o argumento dos midichlorians na trilogia de Star Wars. De qualquer forma, ficou rodando lá na sua memória secundária.

Já ela era alvo de fotologgers e cross postings de toda a nação noturna da menor metrópole do mundo, o Rio de Janeiro. Era admirada tanto pela inteligência quanto pelo descolamento social. Orbitava por diversas estrelas do mundo undergroud. Todas as quatro. Escrevia como poucos, com um português castiço e com um texto amarradinho. Sabia falar português, espanhol, alemão e arranhava um italiano (ou um francês, dependia da noitada). Ainda por cima era bonita. Sabia que não era dona de uma beleza normal, era tida como uma beleza discreta. Mas, ora bolas, como algo que é belo pode ser discreto? Essa é a contradição de termos que mais passa desapercebida pelos falantes. Assim como inteligência militar e trocadilho engraçado. Ou algo assim.

Tava voltando de madrugada para a sua cova de hibernação diurna quando cruza com a criatura atravessando a Nossa Senhora de Copacabana. Foram dois choques de uma vez só. O primeiro ao se dar conta que, para ir para casa, tinha de ficar ali na Nossa Senhora esperando a Van que iria pro Méier ao invés de pegá-la na Barata Ribeiro, que fazia mais sentido. O segundo é que o danado era, digamos assim, mais bonito ao vivo que no mundo digital. Na verdade ele não era bonito não, mas era feito de carne osso e desajeito e isso dava-lhe constância, coisa rara nessas webpersonalities.

Algo naquele momento lhe disse que precisava provar o rapaz. Afinal de contas, estamos aí é para isso mesmo. O mundo nos dá prazeres de formas e tessituras diferentes. Por que não experimentar o protótipo de Gerald Thomas que cruzava a rua cabisbaixo e taciturno?

Chegou em casa, abriu o micro e catou os contatos em comum. Adicionou-o no Messenê e dali a seis meses estavam dividindo as contas do apê na Almirante Gonçalves.

A LITERATURA DE FICÇÃO MORREU? (Mais uma vez)

Em artigo inédito, Rubem Fonseca mostra que o papo de que a literatura morreu, atropelada pelo automóvel, pelo cinema ou, agora, pela internet, não passa de balela.

Muito antes de publicar o meu primeiro livro eu já ouvia dizer que o romance e o conto estavam mortos. Parece que a primeira morte teria sido anunciada ainda em 1880, não obstante, como todos sabem, Emily Dickinson, Tchekov, Proust, Joyce, Kafka, Maupassant, Henry James, o nosso Machado, Eça, Mallarmé, as Bronte, Fernando Pessoa (um pouco mais tarde) estivessem ativos naquela época.

No início do séc. XX, com o lançamento, por Henry Ford, do Ford Model T, um automóvel popular, construído numa linha de montagem, um carro barato que em poucos anos vendeu mais de quinze milhões de unidades, as Cassandras afirmaram que agora a literatura de ficção, na qual se incluía a poesia, estava mesmo com os dias contados. Dentro de pouco tempo todas as pessoas teriam automóvel e usariam o carro para passear, fazer compras, namorar em vez de ficarem em casa lendo. Ou porque não soubessem o que lhes reservava o futuro, ou lá porque fosse, o certo é que muitos escritores, como Yeats, Benavente, Galsworthy, Selma Lagerlof, Rilke, Kavafis, Edna St. Vincent Millay continuaram escrevendo, e talvez até mesmo tivessem um Model T na garagem deles.

Nova anunciação mortal veio logo em seguida, causada pelo cinema, denominado de Sétima Arte. Uma pesquisa da época mostrou que em cada 100 pessoas 80 freqüentavam o cinema e 2 (duas!) liam livros de ficção. Agora mesmo é que a literatura, enfim, havia morrido. Desta vez não tinha salvação. Mas Sinclair Lewis, Thomas Mann, Bunin, Céline, Ana Akhmatova, O’Neill, Pirandello, e muitos outros não sabiam disso. (Os dois últimos são autores de teatro, mas o teatro começou a morrer antes).

Depois nova morte foi profetizada, quando do advento da televisão. Mas William Faulkner, Eliot, Gide, Hesse, Quasimodo, Pasternak, Camus, Hemingway, Beckett, Seferis, Kawabata, Mauriac, Steinbeck e muitos mais não pararam de escrever. Que diabo, esses caras não liam os jornais? Não sabiam que a literatura de ficção havia morrido?

Afinal veio o golpe de misericórdia: o computador e a Internet. Era a pá de cal. Mas o que estava acontecendo? Quem são (ou eram) esses loucos escrevendo poesia e romance – Carlos Drummond de Andrade, Czeslaw Milosz, João Cabral, Pablo Neruda, Montale, Heinrich Böll, Saul Bellow, Isaac Bashevis Singer, Octavio Paz, Brodsky, García Márquez (“se você diz que o romance está morto, não é o romance, é você que está morto”), Canetti, Günter Grass, Kenzaburo Oe, Saramago, João Ubaldo, Ferreira Gullar e um montão de outros? O que na realidade está acontecendo?

Existem muitos estudos interessantes e extensos sobre o assunto, como o da ensaísta Leila Perrone-Moisés, em seu livro Altas literaturas (Companhia das Letras, 1998). Uma coisa talvez esteja acontecendo: a literatura de ficção não acabou, o que está acabando é o leitor. Poderá vir a ocorrer este paradoxo, o leitor acaba mas não o escritor? Ou seja, a literatura de ficção e a poesia continuam existindo, mesmo que os escritores escrevam apenas para meia dúzia de gatos pingados?

Kafka escrevia para um único leitor: ele mesmo. Recordo Camões. Ele era um arruaceiro, e acabou na prisão, ou por motivos de suas rixas ou por ter se envolvido com a infanta Dona Maria, irmã do rei João III. Para obter o perdão do rei ele propôs-se a servi-lo na Índia, como soldado. Lá ficou 16 anos e, afinal, a bordo de um navio voltou para Portugal, acompanhado de uma jovem indiana, que ele amava, e a quem dedicou o lindo soneto “Alma minha gentil, que te partiste”. O navio naufragou e Camões só pensou, durante o naufrágio, em uma coisa: salvar o manuscrito dos Lusíadas e dos seus poemas. Deixou a mulher amada morrer afogada (confesso que especulo), e perdeu todos os seus bens, mas salvou os seus manuscritos. Para quem ler? Estávamos no século 16 e muita pouca gente em Portugal sabia ler. Mas Camões pensou nesse punhado de leitores, era para eles que Camões escrevia, não importava quantos fossem eles.

Os leitores vão acabar? Talvez. Mas os escritores não. A síndrome de Camões vai continuar. O escritor vai resistir.

Viajante


Nunca gostei de viajar: separar roupas, necessaire, passagens, acordar cedo, chegar muito tarde, quartos sem personalidade, cansaço que não se desmancha na noite, desempacotar tudo, arrumar o armário, tevê sem DVD, ar condicionado gelado.

Sempre gostei de estar longe de casa: pessoas novas, paisagens diferentes, comidas, olhares, assuntos novos, sensação de estar perdido a uma quadra de “casa”, uma novidade a cada esquina, galeria ou praça.

Detesto voltar: atochar as roupas, necessaire, verificar onde deixei as passagens, acordar cedo, chegar tarde, portaria do trabalho, cansaço que não se desmancha no expediente, cama cama e cama.

Eu e a cama. Sós.

Que coisa é essa que não se amansa na gente?

publicado na Tribuna da Imprensa

Ele estava ali, parado na avenida da vida, esperando as coisas acontecerem. Sabe como é? Se mexer muito, desanda e já tinha desandado muito do todo. Saído muito fora dos caminhos desenhados, negado o que era destino e queria ter inventado história para si mesmo. Sabia bem das cartas, das estrelas e das mãos. Sabia um pouco das rachas do casco de tartaruga, mas isso não importava. Todos diziam que o seu destino estava rachado, partido, e era obra dele mesmo.

“Tinha dito não quando deveria ter dito sim e o Carma” – ah o Carma – “ia carregá-lo de volta ao que era tido como certo, traçado.” “Mas se era certo e traçado, como poderia ter desviado do caminho?” Perguntava torto sem se entender na situação e nos próprios sentimentos. “Estava certo, mas não estava exato.” “Ah bom, agora entendo tudo.” “Pois faz mais sentido assim, não é mesmo?” “Não faz, mas entendo.” “Não importa, é inexorável e irresistível o teu destino.” “Por que sempre que se fala em destino e coisas afins, usamos termos que não cabem no dia-a-dia?” “Não me conteste, vil criatura. És apenas pueril espectador da transeunte efeméride.” “Você não disse coisa alguma.” “É verdade, mas isso também não importa. Vai lá e segue o teu caminho.”

E já ia saindo quando deu conta que não perguntou aquilo que queria. Foi enrolado com o palavrório do outro que se dizia dono do futuro. E nem falar com as conchas ele sabia. Voltou e encarou de frente enquanto o outro jogava dados.

“Ei. Eu quero perguntar uma coisa aí.” “Fala meu filho.” “Eu posso falar de mim para os outros? Falar dos amores errados? Das coisas que me arrependo, da memória que não quer ficar quieta? Das pessoas do passado perto que me surgiram no intermezzo das quietudes? e de como eu me comovo quando ouço o Beach Boys e lembro dela? E de que, mesmo achando que é tudo errado, que não tem de ser, que não há mais o que fazer quando as coisas chegam nesse estado, ainda sinto uma vontade enorme de correr à noite na beira da praia, do Posto Seis até o Leme e berrar: EU TE AMO. De que eu vi a merda de um futuro a dois e neguei-o por estupidez, surto ou desespero e todo dia, quando acordo, não sei se estou vivendo o meu destino ou o meu erro. E, por isso, tenho de sentar na frente de papel, pena e tinta e colocar o fígado do lado do copo até esvaziá-lo da bile, destilando o nanquim?”

Ele jogou os dados, desenhou algo que nunca faria sentido.

Disse: “Não. Cala-te.”

Quarta-feira de cinzas

publicado na Tribuna da Imprensa

Relembrava antigos amores num sítio de relações, como se catasse figurinhas repetidas num álbum de carne e bytes. Aliás, mais carne que tudo. Bateu a saudade da carne como se não provasse o seu gosto meses a fio. Ligou para três ou quatro telefones na agenda do celular e foi só água. Olhou para o seu abismo interior e enxergou a besta que berrava por calor, umidade e atrito.

Foi à janela odiar um pouco o bloco que passava. Rostos tão felizes, alcoolizados e anestesiados da realidade. Como se fosse uma catarse do mundo real que se expurgava num Ala-la-ô coletivo. Fitou um ou dois pares de seios quase desnudos, mal reconhecendo o ser humano que estaria por detrás do silicone implantado.

Nunca se compadeceu do mistério que se escondia no ritmo cadenciado dos tambores. Muito menos naquela coisa desconexa e abafada que é o som de uma “bateria” de bloco de sujos. Acompanhando, um carro de som bem capenga, cujo volume das caixas de som ameaçava estourar os seus magnetos e os tímpanos dos outros. E os músicos. Ah, os músicos! Não sabiam o que era cadência ou ritmo. Que inferno!

Mas estavam lá as meninas semi-nuas. E um animal que não se aquietava nas calças, ameaçando a humanidade com estouros de zíper, apesar do velcro. Tomou seis doses de coragem líquida sem gelo ou água, no estilo cowboy mesmo. Desceu os lances de escada quase tropeçando nos moradores que abandonavam a superlotação da calçada.

Confusão na entrada: uma briga de casal tomava o espaço possível para a evacuação da portaria e chamava a atenção de quem pudesse fazer a gentileza de dar “um passinho para o lado, por favor” para que ele, embriagado, braguilha semi-aberta e camisa poída e manchada, chegasse ao ar livre.

Parou ali mesmo, na escada. Perdeu o sentido da festa. Voltou e encontrou o gozo no resto da garrafa do escocês.