Epitáfio

Sabe, eu hoje falei com a moça que é paga para escutar a minha cabeça. É paga para ouvir as besteiras sem importância e tentar dar a elas algum sentido. Claro que não há sentido, são besteiras de um cara de meia idade que não se cabe mais nas próprias calças, não se calça mais nos próprios sapatos. São besteiras, besteiras. Mas a moça é paga e foi paga para escutar e ouvir e entender, não necessariamente nessa ordem. E ela me escuta, sabe? Ela dá atenção ou finge dar atenção, o que dá na mesma no fim das contas. E ela fala de volta, ela fala coisas sensatas e pertinentes e eu acho que fazem sentido mesmo ou eu finjo para mim mesmo que há sentido nas besteiras faladas. E a gente fica nesse jogo de fazer sentido e de entender e de dar razão às coisas, às besteiras sem sentido, razão ou entendimento.

Sabe, ela fala das coisas e eu falo das coisas mas as coisas não são sentidas. Há um abismo entre minha fala e meu choro, um continente entre a minha piada e meu sorriso.

Eu disse a ela, outro dia, que ando cansado. E eu tive uma namorada certa feita. Ela , a namorada e não a moça que ouve minha cabeça, dizia que eu só falava de cansaço e que me sentia velho, mais velho que o tempo, que as vontades, mais que os desejos. Não é velhice, eu diria agora, é só cansaço. E eu dizia à moça que ando cansado de mim mesmo. As coisas escolhidas, as palavras com as quais eu me definia, não me cabem mais. Acho que a barriga cresceu demais, o cabelo caiu demais, a barba embranqueceu demais e eu repeti demais as mesmas palavras, as mesmas formas onde eu me encaixava e cabia. E há a cama, que tem um buraco. O buraco é no colchão, não na cama, mas não ajuda a descansar. E as formas e o colchão me cansam, eu não caibo mais ali, assim como não caibo mais em mim, mas eu disse isso.

Daí esse cansaço é um descabimento, uma forma de eu dizer ‘chega!’ para mim mesmo. De dizer que as coisas não funcionam mais, o que eu era não me serve e não mais me servirá. A gente sempre carrega consigo uma imagem de si mesmo e o certo, o que deveria ser certo, seria envelhecer essa imagem à medida do corpo, no compasso das pernas, do coração que resfolegueia ao subir o terceiro lance de escada. Mas a gente vive no passado, acha que somos sempre alguém que já não é mais. Carregamos o fardo da memória do que fomos sem ter as pernas e os braços a vontade e a disposição e a tesão dos dezessete anos. Pior, por vezes achamos que somos o que sonhamos em ser no futuro.

Sabe, eu disse a ela que queria morrer. Não com essas palavras, mesmo sendo isso o que deveria ser dito em alto em bom som, mas disse que me encaixotaria, me enquadraria, que entraria nas regras e deixaria de transbordar. Eu me limitaria, me diminuiria, me resumiria, me reduziria. E não há nada mais reduzido que um corpo num caixão. Esse aí não poderá mais ser nada, apenas o que dizem dele. Ele não poderá mais dizer nada sobre si e quaisquer rótulos que lhe coloquem (que se coloque) não fará mais sentido a não ser como epitáfio.

E num epitáfio, ninguém é mau.