publicado na Tribuna da Imprensa
– pós Arte no Escuro
Já fazia uns vinte anos que não se viam.
Era uma outra época, um pouco mais inocente mas ainda assim violenta. Fabrício tinha lhe ensinado a brigar na rua com canivete, faca e arma de fogo e a fazer ligação direta em fuscas e gols. E ele tinha ensinado a ele como chegar nas meninas, a beber as coisas corretas, a impressionar o outro sem ser pela truculência e a negociar o melhor preço em qualquer mercadoria.
Se separaram quando um resolveu entrar no tráfico e outro resolveu terminar o segundo grau. Um fugiu pra Manaus, fugindo dos traficantes do morro do Cantagalo, o outro começou a frequentar as festinhas alternativas no Crepúsculo de Cubatão.
Se falaram uma vez depois da viagem.
“Fala cara, tô de volta.” “Fabrício? É você?” “Cara, tô na merda e preciso da tua ajuda.” “Cara, quando, como e quanto?” “Cem barões, cara.” “Puuuutz. Não rola. Não tenho essa grana.” “Então tá. Valeu. A gente se esbarra por aí.”
Soube por um conhecido em comum que ele tinha sido encontrado em Vila Valqueire com dez tiros na cara. Reconheceram pelas digitais.
Vinte anos, portanto, e ele não tinha mudado nada: loiro, cabelos encaracolados e de olhos azuis como duas águas-marinhas. Pena que tinha o trato social de um rinoceronte. Talvez isso tenha mudado um pouco com o tempo, né? A vida dá muita porrada em quem não sabe andar acompanhado e não é leviana com quem resolve ser todo errado desde o momento que nasce.
Bom, tentou ser delicado. “E aí, cara! Quanto tempo! Quem é vivo sempre aparece!” Xiiii…
“É verdade! Como você tá cara? Me conta da tua vida!” Tinha um sorriso aberto e contagiante. Aliás, sempre teve. Só não tinha mais muitos dentes na boca.
“Nada de mais. Trabalho, casa, peguetes. Vamos parar ali prum chope com cocrete?” “Pô, formou! Só que tou duro, cara.” “Não tem problema. Tá na minha.”
Sentaram. Vários chopes. Parecia que era ontem, sabe? Mas não era e tinham muito assunto para colocar em dia. Ele contou do sumiço, da história que ouviu. O outro calou. Não quis comentar o porquê do ocorrido. Respeitaram-se. Noite caiu e o celular de um toca. O outro não tinha. Tiveram de se separar.
Na despedida, um olhar longo como se soubessem que aquele ‘até logo’ era um ‘para todo o sempre’.
“Cara. Como é que você foi me achar aqui no meio de Copa? Cento e vinte mil moradores. A chance é nula.” “Né não. Aqui é tua casa. Tua alma. Tu sempre foi assim.” “Como assim?” “Cara. Existem muitas Copacabanas. Tem uma que quer ser Ipanema, saca? Luxo, high society. É a que dá tesão e chama as putas e os gringos. Outra é uma Madureira com turista e maresia. Essa é tu. Nessa te procurei e te saquei.” “E a tua Copa, manu véio?” “Saca a dos aposentados e dos milicos de pijama? Das músicas de bossa nova e fossa?” “É a tua?” “É. A que tá morta.”
Deu um abraço no amigo.
Atravessou a rua.
Perdeu-se no mar de gente e largou a conta para pagar.