publicado na Tribuna da Imprensa
Hipócrita (do dicionário Houaiss)
que ou aquele que demonstra uma coisa, quando sente ou pensa outra, que dissimula sua verdadeira personalidade e afeta, quase sempre por motivos interesseiros ou por medo de assumir sua verdadeira natureza, qualidades ou sentimentos que não possui; fingido, falso, simulado
Etimologia: gr. hupokritês,oû ‘o que dá uma resposta, esp. intérprete de um sonho, de uma visão; adivinho, profeta; ator, comediante; velhaco, hipócrita’;f.hist. sXIV hipocrita, sXIV ipocrita, sXV ypocrita
Ele tinha uns quarenta anos e muitos anos. Pele queimada de sol. Acima do peso. Cabelos oleosos e curtos. barba aparada. Camisa azul, passada, dentro das calças bege, justa à cintura com o cinto marrom claro, combinando com o sapato. Não usava óculos. Não tinha manchas de gordura ou suor. Não tinha marcas visíveis no rosto ou no braço.
Eu olhava para a menina que sentara ao meu lado. Cabelos curtos, perfume doce, olhos com rímel ou delineador, macacão bege que terminava numa bermuda que expunha as coxas, os joelhos, as canelas e a bota marrom. Bonita moça. Ouvia música no tocador de emipetrês genérico que carregava entre ambas as mãos.
Estancou-se junto ao motorista e deslanchou a sua ladainha. Não comia desde a manhã. Só tinha tomado um copo d’água como almoço e estava levando mais um monte de nada para casa. Tinha filho e família para alimentar. Família, a qual, em nada ajudava a resolver a situação. Estava desempregado, obviamente. Disse que não sabia o que iria fazer no dia seguinte. Disse que não sabia se iria um dia seguinte.
Nesse momento prestei atenção. Dizia algo sobre a morte da mãe, que morrera sozinha, deitada na cama, em silêncio. Dizia que estava desesperado, que não sabia mais o que fazer da vida, que não arrumava emprego, que não arrumava trabalho, que sequer arrumava dinheiro das pessoas que o olhavam em todos os cantos do ônibus. Menos na cara. Ninguém o olhava na cara.
Eu já perdi uma pessoa que amava. Perdi-a antes de conhecê-la. Uma noite e meia sem notícias da promessa de vida que mudara totalmente a minha vida. E eu, arremetido a uma função de alimentador de papel numa bandeja de impressora colorida, beijei os pés do desespero. Olhei de baixo para cima para seu rosto desfigurado e entreguei a minha vida aos outros.
O desesperado não planeja. O desesperado não pensa. O desesperado apenas age. É levado de canto a recanto pela vida que ele não controla. Ou melhor, desistiu de tentar controlar. É uma bóia no meio de uma ressaca histórica. De certa forma, somos uma legião de desesperados, um ônibus cheio de desesperados que são levados para um destino conhecido, mas em roteiro e tempo implanejáveis.
Entreguei dois reais não por pena, mas com a vã esperança de vê-lo se calar. Colocou a nota no bolso sem agradecer. Olhei seus olhos e reconheci a minha face de doze anos atrás. Eu olhava os papéis entrando na impressora e só me desligava do processo quando a diaba teimava em engasgar, em dizer: “Atenção, homem. Você ainda está vivo. E eu também.”
Ele não se calou. Aproximou-se da catraca e continuou sua liturgia ignorada. As pessoas se desviavam nos próprios lugares constrangidas e ele procurava os olhos que corriam no chão, nas janelas, fechados em pálpebras. Não os encontrou. Repetia a história da morte da mãe, do desemprego, do copo d’água que tomara no almoço, no fim incerto que teria no dia seguinte.
A menina do meu lado aumentou o volume do aparelho de som portátil. Fiz o mesmo. Parei de ouvir o discurso. Preferi os The Beatles urrando alguma música que já nem me lembro. Talvez fosse um grupo fazendo um cover ruim de Getting Better. Não importa. O ônibus comia horas em metros.
Ele repetiu: “Não sei o que será de mim amanhã”. Pensei: “Só espero que ele não atrapalhe o tráfego.”