Por vezes atravessamos uma rua sem sequer olhar se os carros possíveis se fazem presentes ou não. Normalmente isso se dá quando temos certeza que está tudo bem. Sinal fechado, altas horas da madrugada, ruas desprovidas de interesse viário. Ou então quando o nosso mundo interior está tão conturbado, tão agitado, que os eventos externos deixam de ser importantes.
Ele chegava em casa e sempre atravessava a Avenida Atlântica assim, sem ao menos ver se um automóvel mais saidinho ameaçava atravessar os sinais vermelhos ou se precipitar por sobre a faixa de pedestres. Sempre atravessava no sinal, quando vermelho, como lhe fora ensinado na escola. Andava na linha até o trem chegar. Não ousava nem ao atravessar a rua.
Não chegava muito tarde em casa não. Umas oito, nove horas no máximo. Chegava exausto, consumido pelo processo diário de lobotomização empresarial da empresa em que trabalhava. Se acordar era um esforço, levantar-se para voltar à casa era a realização da inutilidade de seus dias.
Já se desencantara com quase tudo. A própria carreira fora a primeira a sucumbir. Depois os amores, a vontade de ficar rico, de fazer cinco faculdades e seis mestrados, a diversão inocente, a diversão hedonista, o desânimo, o niilismo, tudo perdera o seu encanto, o glamour.
No verão parecia que tudo piorava: o ar pesado; o calor desumano; as poucas roupas das semi-deusas, filhas de Afrodite, inalcançáveis pelo seu salário sub-gerencial. Mas havia tempestades! Banhar-se na chuva da tempestade de verão quando chegava do trabalho era o máximo que chegara a um orgasmo.
Certa feita, antes de anoitecer, anunciava-se a tempestade. A expectativa parada do ar à beira-mar. Não ventava. Não esfriava. O bafo quente e úmido era a certeza que era um típico Verão Opressor. Não eram dias da alegria tradicional dos trinta e poucos graus, com Sol a pino e as roupas no armário. Era a face de Helios que se voltava lembrando aos seus adoradores que ele é pai: dá a vida e alegria mas toma-as ambas ao mesmo tempo, se necessário.
Na rua: pessoas apressadas para curtir o restinho de sol na praia; engravatados derretendo como velas, querendo chegar em casa para banho e cerveja gelada; crianças vivendo o resto da sua liberdade dos livros e horários, umas retratos do caos em sorrisos, outras deixando a infância em cada beijo dado; vendedores sobrevivendo na oportunidade e na contravenção.
Ele se apressara a sair do trabalho a tempo de ver as nuvens se amontoando como uma decisão de futebol no Maracanã. Aquela massa cinzenta vindo irresistível fazendo-se aterradora aos homens pobres de espírito.
Saltou do ônibus e sentou no quiosque em frente à Hilário de Gouveia. Esperou a primeira gota como quem espera a sobremesa depois de um almoço de vegetais insossos e minerais inertes. Em segundos estava encharcado de água e porra. Levantou-se. Pegou a pasta com os papéis inúteis e inutilizáveis. Atravessou a rua sem olhar para os lados.
Caminhava sem se preocupar em disfarçar a cara que pedia um cigarro pós-coito. Deparou-se com ela.
Primeiro notou os cabelos negros, cacheados, à altura dos ombros. Depois a pele alva. Aí viu que estava de vestido branco, seios à mostra na transparência dos tecidos. Os pêlos, mais discretos, perceptíveis a quem não fosse míope. Por último o sorriso de quem gozava como se não houvesse amanhã.
Ao redor dos dois, as pessoas apressadas em fugir da água, como se fossem de açúcar, outras abrigavam-se nas marquises dos restaurantes da beira-mar. Os raios no oceano soavam o encontro e os carros lentos se acumulavam na pista, compondo uma sinfonia de surdos elétricos, motores à explosão e buzinas eventuais. Esse mundo de pessoas, esse mar de histórias, passava invisível àquele casal.
Olharam-se. Descobriram que eram um para o outro. Os braços enlaçados. As bocas sôfregas. Os instintos finalmente descobrindo para que foram feitos.
Acordaram em um desses hotéis caros e vagabundos do Lido. Ele, contemplando a beleza nua dela. Ela, aninhada no peito dele, brincando com os pêlos parcos que insistiam em nascer. Ele pediu um café da manhã que veio rapidamente. Comeram. Beijaram-se. Amaram-se pela quarta vez.
Ao término da maratona, ela tentou esboçar assunto. “Qual o seu nome?” “Não faz isso.” “O quê?” “Não quebra esse silêncio.” “Como assim? Só quero saber o seu nome.” “Faz assim: não tenho nome para você. Se quiser, sou Chaac.” “Hein? Você é maluco?” “Não. Não é isso.” “Explica!” “Chaac é o deus Maia das chuvas e que…” “Deixa de babaquice. Qual é o galho?” “Tá bom. É que tem um cínico que mora aqui dentro, sabe?” “Hmhm.” “Um cara que acha que os encantos da vida são distração de um tolo, de um babaca distraído que se encanta com coisas corriqueiras, mundanas. De um idiota que não sabe que chuva é chuva, pedra é pedra, pão é pão.”
Fez cara de quem não estava entendendo nada, mas deixou ele continuar. “Então. Ele estava distraído – fugindo da chuva, eu acho – quando me encantei por ti. Nos encantamos pelo momento, pela magia das águas do céu e do mar, pelo anúncio da tempestade. Em ti, vi a Deusa que Chaac fecunda para a colheita do outono.” “Acho que estou entendendo.” “É isso. E você ao abrir a boca, ao me pedir o nome, estava prestes a despertá-lo. Te peço apenas um momento de silêncio.”
Ela consentiu mas ele não se calou. Encostou a cabeça no seu colo e, visivelmente emocionado, desabafou. “Me deixe tolo, naïve, ingênuo. Quero olhar o mundo novamente como quem não o viu e viveu dezenas de vezes. Vida, após vida.”
Ela o olhou nos olhos. Beijou-o. Sussurrou algo no seu ouvido numa língua há muito morta e o recebeu como não fazia há centenas de anos.