Sobre deixar solto

Sempre fui bem adepto ao modus operandi do V, de V de Vingança. Acho que quando a coisa não funciona mais, é melhor colocar no chão, tacar fogo, matar quem tava dentro (e defende a coisa). Às vezes torço para que queime-se uns ônibus, quebrem uns trens, violentem umas vitrines, exorcize-se umas vidraças. Metaforicamente, claro.

Algumas vezes aplico esse conceito na minha vida. Mesmo quando algo está semi-bom, mas parece que não tem mais jeito, termino, encerro, findo. Ou deixo acabar. Ou provoco o caos e a coisa se dá por si só. Coloco alguma energia na máquina e ela se autoconsome. Pontualmente, claro.

Já conjecturei em legalizar os pecados. Implementaríamos taxas por adultério, corrupção (ativa e passiva e grupal), preguiça, desleixo, desmazelo, fúrias e impropérios. Desta forma mataríamos o mal primeiro de todas as relações que é a hipocrisia. Assumir-se-ia todos os crimes e pagar-se-ia as indulgências necessárias. Aí me lembro dos meus próprios erros e da minha conta bancária zerada. Regularmente zerada, claro.

Penso — à boca miúda — em colocar pilha nos separatistas. Em todos os separatistas. Naqueles que querem apenas se livrar de Brasília; nos que querem “desligar a locomotiva do país do restante do Estado”; nos que desejam manter uma identidade cultural à parte; nos que querem manter seu régio poder regional sem intervenções de outras plagas. Penso em ver o circo pegar fogo e o projeto da multicisão brasileira se fazer realidade. Aí me dou conta que não terei os dois séculos de “vantagem” para ver os resultados dessa merda grandiosa que daria e me calo. Claro.

A gente se esquece que os projetos mais importantes não revelam seus efeitos no curto prazo. Não é em duas semanas que se sobe um produto genial. Não são três meses de “estudo” que faz do gênio, um Nobel. E não sabemos se o prêmio dado hoje será válido daqui a cem anos. A gente costuma premiar o que nos encanta, não o que funciona ou é importante.

Sempre fui adepto ao caos ordenado, ao descuido cuidadoso, ao deixar solto bem observado. É o mínimo que posso fazer para o tempo que se anuncia.

A distância da diferença

“Você vem hoje?”

O convite nasceu como se tivesse vontade própria. Era óbvio o meu interesse na menina, mas estávamos naquela fase ridícula de disfarçarmos as intenções. Ainda assim, dado o meu papel predeterminado de alfa da relação, o convite teria de partir de mim. Sempre. Saco.

“Me liga quando você chegar no bar. Acho que consigo ir sim.”

Era a quarta vez que eu a chamava. Quarta depois de três desistências em cima da hora. As desculpas variavam do almoço inesperado com a mãe ao abacaxi que teria que, inevitavelmente, ser descascado à meia-noite, impedindo-a de partir ao meu encontro. Algo me dizia que o cerca-lourenço não estava funcionando a contento.

Parti incauto para o evento e mandei um torpedo para a criatura em questão ao chegar ao boteco. Lá, diversos amigos se encontravam em estado de embriaguez adiantado e logo me dediquei a acompanhá-los no tradicional esporte bretão de encher socialmente a cara com chope de primeiríssima qualidade. Dado o advento do primeiro prato de carboidratos à mesa, o celular vibra com uma mensagem de texto.

“Não vou.”

O resto da mensagem pouco importava e, para ser sincero, já era esperado. Quando se passa das raias dos quarenta anos, sabe-se que o não das meninas pré-balzaquianas é mais freqüente que o seu sim. Levanto a questão na mesa e sou repreendido imediatamente pela ala feminina. Diversas amigas dentre vinte e muitos e quarenta e poucos discordam do meu questionamento. Outras apenas calaram-se e me lembraram de aventuras (e desventuras) anteriores que comprometiam a minha isenção de julgamento. Súbito, uma voz da razão.

“Se fosse mentira, o tio Sukita não existiria.”

Fato! Sabemos que as propagandas não são exatamente fontes de inovação cultural e, muito pelo contrário, tendem a reforçar opiniões, gostos e preconceitos já estabelecidos para poder agregar ou contrapor elementos dos produtos a serem vendidos. E se uma propaganda mostra um quarentão cantando uma menina de vinte e poucos como um ridículo, há de ter algo de senso comum aí. Ou estarei completamente errado?

Mas me pego perguntando novamente: quinze anos fazem tanta diferença assim? Não no sentido de maturidade e vivência, mas no sentido de distância etária aceitável. Será que um quarentão que sai com uma menina de vinte e cinco anos (ou vice-versa) é realmente ridículo? Será que ele está realmente querendo encontrar uma vitalidade que sente que começa a se esvair de dentro de si ou apenas foram as contingências da vida que os colocaram nessa situação?

Pessoalmente, sempre achei as mulheres com mais de trinta (ou mais) bem mais interessantes que as novinhas. Conteúdo é tudo quando se trata de relacionamento. Há de ter troca sempre entre as partes. E elas tendem a ter um pique mais próximo do que estamos acostumados a levar: cinema, jantar, teatro, cama. Boates e dança só até as duas por conta do trabalho na segunda ou dos filhos que acordam cedo. Eu acho ótimo e certo isso tudo. Ou sou eu que tenho 150 anos morando dentro de mim? E Balzac, o que ele tem a dizer disso tudo?

Independente do querer das pessoas, a noite termina e quinze anos de distância parecem pesar mais que nunca.

Semeando na dor

A cada ano novo, escrevo um texto de boas vindas para período que se inicia. Tento fazer algo diferente, tento mostrar o que não é esperado em uma mensagem de fim de ano, mas sabido por todos no íntimo. Ou não.

Não lembro mais o que já desejei. Talvez a última coisa tenha sido sobre renascimentos e, de fato, renasci no último ano. Renasci abrindo mão de coisas que prezava e de sonhos acalentados por dezenas de anos. Coisas que me definiam, que me espelhavam. Abri mão de mim mesmo e esperei Saturno vir com sua foice tirar o que não cabia mais em meu personagem.

As dores do processo, as angústias e as ansiedades ainda me acompanham. Confesso que dói cada passo, cada manhã e cada noite (agradeço aos céus e Santa Neosa e São Depakote pelas graças alcançadas!), cada decisão e cada postura. E não sei se valerão a pena no fim das contas.

Afinal, não somos seres que conseguem ver o tempo de uma forma inteira. A gente não sabe o que virá, se virá, quando virá. A gente não sabe decidir, medir, precisar. Apenas reagimos com o ferramental que a evolução nos deu e fazemos o melhor possível. E neste melhor possível está a dor.

Faz-se muita analogia com as “dores do parto”. Não posso falar delas, nunca pari. Mas as dores diárias, dessas falo com propriedade e elas são atrozes. E também são sinal de que ainda estou vivo, que parte de mim se incomoda com o entorno, que minha zona de conforto ainda é pequena, mínima. Na dor que sinto, mora a semente da mudança, da revolta e da transformação.

Sempre falei muito também das dores do crescimento, das dores das quedas, das dores da vergonha, do aprendizado, do ego (quando colocado em seu devido lugar). Falava e fiz pouco para viver essas dores. O ano que passou tratou de me esfregar esses momentos na cara a ponto de ter dúvidas se iria aguentar o processo. Fato: não aguentei. Apenas por pura e estúpida sorte é que prossegui e me deixei ser amparado por pessoas cujo amor é indiscutível. E mesmo a elas tive que cortar para seguir em frente.

Se há mensagem do ano passado para o próximo que seja: aceite sua dor. Seja a do crescimento, seja a da bordoada tomada, ou do tratamento de câncer. Enquanto dói, você vive. Enquanto dói, vive-se. O resto é ausência de si.

Um bom ano para todos nós. Cheio de dores e semeaduras.

Crônica do amor seco

Te prometo o amor seco e morno. Porque todo calor se dissipa e a umidade evapora. Só a alma permanece. A ti, meu amor, registro as promessas para a eternidade em que passaremos juntos.

Te prometo a traição diária, o flerte compulsivo, a obsessão no outro. Afirmo que o meu amor por ti é tão grande que não cabe em mim. E esse amor me comanda, me domina e me fascina. Ele me faz procurar cantos onde possa guardá-lo e toda alma de coração vazio é receptáculo para essa paixão. Paixão que traz alegria e prazer. E a alegria não se contenta em si só, quer se multiplicar para o outro, dar de si para todos que lhe rodeiam. E levar as pequenas alegrias aos que não têm amor é fazer aumentar a ambos numa torrente infinita de prazer, alegria e amor. A alegria de muitos é a prova do amor que trago para ti.

Te prometo a desculpa vazia, sem vontade, a sinceridade invertida. Pois a verdade acaba com o glamour, destrói o elán que mantém a paixão em ebulição. A verdade castra, castiga e maltrata o amante, o amado e o amor. Pois não foram as mentiras pequenas, sussurradas ao pé de ouvido que lhe trouxeram? Não fora o encanto do impossível, do amor eterno e sublime que te fez despir os seios? Não fora o desejo irreal do gozo perpétuo que te fez voltar à minha casa? Pois temos de manter esse encanto vivo e vívido. A manutenção desse encanto é prova do amor que trago para ti.

Te prometo a pouca atenção nas suas coisas, o desinteresse na tua vida, o muxoxo resignado. Pois é dado que o mundano desencanta mais que a verdade. O cotidiano massacra e torna vulgar o que era belo e raro assim como uma foto desbota de tanto ser manipulada ou um disco de vinil arranha de tanto chorar as canções para ouvidos moucos que se embolavam no sofá da sala e xingavam quando tinham de trocar do lado A para o B. O nosso amor deve ser motivo e razão, início e fim, dos nossos dias. O resto não deverá mais importar. A intensidade dessa paixão é a prova do amor que trago para ti.

Te prometo o eterno adiar das mudanças, dos consertos, de fazer dar certo. Mudar poderia arruinar o que foi conquistado. Pois o passado é perfeito e não permito nada menos que a perfeição para ti. É no mundo estático, finito e imutável que vivemos a nossa história particular e ali é que manteremos a chama que nunca se acabará — apesar do poeta — e que nos aquecerá para todo o sempre. O instante em que nos beijamos pela primeira vez, o primeiro gozo, a primeira refeição, o primeiro acordar, serão sempre os momentos que nos moverão de agora por diante. A manutenção da memória do que fomos e que sempre seremos é a prova de amor que trago para ti.

Te prometo a negação premente, posto que não fui eu, mas o meu desejo a me fazer errar. Negando, te dou a certeza. A certeza traz a segurança. A segurança a manutenção. A manutenção, o elan, o glamour, a paixão e a alergia. Então te negarei tudo: as verdades, as mudanças, as vidas de outrem, a minha dedicação, a atenção, o céu, o universo, a terra e negarei — por fim — até mesmo que te amo. Pois preciso de ti mais que a mim mesmo e te negando o tudo, nego a mim. Só tu me importa. E essa minha dedicação é a prova de amor que trago para ti.

Te prometo a tristeza perene, o desânimo diário, o desesperançar noturno. Pois cada um tem de ser a alegria, a razão suprema e sublime da existência, o motor de alma do outro e, dado o brilho de nossa convivência, o restante do mundo será opaco e sem viço. Então, ao nos separarmos, nada fará sentido, nada terá gosto ou causará espécie. Somos o sal, o vinagre, o azeite e pimenta da vida. E esse tempero é a prova de amor que trago para ti. Somente para ti.

Te prometo o amor seco e morno. Porque todo calor se dissipa e a umidade evapora. Só a alma permanece.

Lavando a alma

Tenho tido saudades de entrar num teatro e me deparar com aqueles espetáculos que me fazem marejar até os borbotões. Era o tipo de coisa que acontecia comigo, virava e mexia, quando era mais novo. Amigas e amigos me chamavam para eventos — ou falavam deles — e eu ia. Ia e me emocionava. E marcava a memória na alma. Eles escassearam.

Parte porque me afastei da turma que curte esse tipo de coisa; parte porque endureci; parte porque a vida é atroz e devora nosso tempo; parte porque temos que construir, produzir, correr e relatar e começar tudo de novo.

Perdi nesse ínterim um tempo importante para chorar e me encantar. Porque comigo o encantamento em mim é irmão do choro; é saudade de mim mesmo que avisa “óia, cara… você ainda pulsa”.

Será?

***

Tenho um setlist que me traz memórias ou sentimentos bem caros. Algumas canções falam de paternidade, das relações de pais e filhos — essa que nunca soube lidar direito com — e que me fazem desabar na hora. É tempestade instantânea, com direito a terremotos e tsunamis internos, mas o que tem me destruído regularmente é uma volta recorrente ao passado. Discos que havia esquecido ou shows que ficaram lá no fundo do meu backlog.

Tenho revisitado-os preocupantemente.

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Nossa modernidade pede que sejamos “Colgate” o tempo todo. Não aceito isso e nem acredito nessa baboseira. Quem convive diariamente comigo sabe que estou mais pro escárnio e fúria que a meiguice da família “Doriana”. Talvez isso tenha algo a ver com essa minha necessidade de desmonte e reconstrução regular que só uma boa ducha lacrimal traz.

É quando eu me reencontro e me dispo das armas e cores de Jorge.

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Outra coisa que me vem à mente é como essa nostalgia consegue me derrubar fácil. Já escrevi anos atrás sobre o dia que chorei copiosamente num taxi ao ouvir Pedaço de Mim, do Chico — mas também, que crueldade! — e meio que parei de ouvir música na rua por conta de vexames assim.

Antigamente achava que tinha assuntos com aquele moleque de 17 anos que ainda mora dentro de mim. Recentemente pensei que tinha quitado todas as dívidas. Pelo visto, não. A taxa que ele cobra do adulto insensível e inquebrantável ainda é muito alta.

Ainda bem.

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Tenho tido saudades de ser eu mesmo e é bom me reencontrar de vez em quando, ainda que só.

Adeus

Tomei banho de chuva com ela e a gente foi feliz quando chegou no corredor, ensopando o caminho e os degraus e a entrada da casa. A gente ria e não sabia se voltava para chuva que caía quente – como sempre cai no verão do Rio de Janeiro – ou se entrava no banho. A gente se olhou e se despediu naquele momento. Era a inocência de uma paixão que virava amor aos poucos e, como todo amor, tinha data para terminar.

A gente falou uma besteira – não sei se ela, não sei se eu – e começamos a rir. Rimos até a bexiga doer e a gente passar a rir porque estava rindo. A graça não fazia mais sentido e a vontade de rir era maior que qualquer outra coisa. O tal do riso vinha fácil e frouxo e feliz porque os dias – ainda que confusos e atropelados e cheios de complicações e problemas – eram essencialmente bons. O céu ainda estava sobre nossas cabeças e o chão, embaixo dos pés. Tudo fazia sentido e o futuro, ele não existia.

A gente se amou e chorou e amou de novo. A gente brincou de casinha e de viver o presente e de revolver o passado e de olhar os desafios de frente e de brigar por besteiras e de derreter o outro com um abraço e um cafuné. As memórias desse tempo irão virar um lugar bom para quando eu quiser ficar triste; lá eu serei acolhido e abraçado e – acho – que estarei te abraçando de novo.

Quando a gente não tem futuro, o presente vira eterno.