Dez da noite.
— Moçomedáumtroco?
— Vai trabalhar, vagabundo!
— Moçamedáumtrocopelamordideus?
— Tenho não, menino! Me deixa!
— Mossumtroquinhosópreucompráumpão?
— Tá bom, menino, derconto!
— Brigadumossu!
— Nada. Toma juízo e não cheira cola.
Compra um pão na graxa, coca-cola. Sobra um troco. Compra bala. Na padaria fazem uma quentinha com o frango que tava sobrando no forno e com um pouco de farofa, na faixa. Vai até à calçada, perto da igreja e escuta uma música que sai, quase calada, de um apartamento do segundo andar do prédio.
“Oh, pedaço de mim/Oh, metade arrancada de mim/Leva o vulto teu/Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu”
Sem entender bem, o menino se encosta na parede, não briga mais pela comida que os outros moradores de rua teimam em comer com o olho. Passa por ele o carinha que lhe deu o vale-rango. Passa olhando o chão, desviando do olhar daquele menino magro que não reconhecia mais. O menino não mais tinha fome de bala, pão e cola, mas tinha um vazio em si que não cabia mais em alma.
Passa e entra pela portaria com pressa, preocupado com a segurança; cumprimenta automaticamente o porteiro que mal o nota; chama o elevador; aperta o quarto andar; dá de frente ao 403.
Respira fundo.
Abre a porta.
A casa, vazia, cheirava a ar fechado. Fazia um ano desde que os planos ficaram sem pé nem cabeça, que o sentido das coisas perdera-se num arroubo, num desejo desenfreado. Num querer mais que um poder fazer. Olhou para tudo aquilo que planejara para dois e para si no espelho do corredor. Só.
Abriu as janelas, e escutou a música que vinha do vizinho de baixo. Chorou baixinho, humilhado pela vida que o atropelara. Arriou ao chão.
Levantou-se devagar; verificou se o gás estava ainda desligado; se o telefone; a luz não; abriu o chuveiro; tomou banho frio após da água turva de cano parado cair por dois minutos. “Que filho da puta tá ouvindo Chico a essa hora?” pensou um quase alto. Não tinha importância.
A cama estava lá, os lençóis, os travesseiros. Empoeirados, mas arrumados. “Ela ainda vem aqui uma ou duas vezes por mês” — falou para si. Sentou na beira da cama, levou as mãos à face e anoiteceu. Antes, ligou para ela do celular e desligou antes que ouvisse a sua voz. Desespero.
— Idiota! — falou para o telefone já mudo. O Outro escutou. Era o oitavo desde que saíra do apartamento. Desde que.
— Esse babaca ainda te procura? Já disse que cuido disso para você! Dou uma coça nele que nunca mais ele vai pensar no teu nome!
— Não precisa.
— Precisa sim.
— Deixa. É passado para mim. Ele quer que vire presente de novo.
— Não te entendo.
— Nem precisa. Deixa.
— Tá bem. Vamos na Bunker hoje?
— Não. Tem hip-hop hoje e tô fora dessa.
— Ok. Pra onde então?
— Sua casa.
— Ok.
“Esse não passa dessa noite! Babaca machista!” Pensou calada e subiram devagar a República do Peru no Ômega Preto de vidro fumê e neon nos faróis.
— Odisseia? Que tal?
— Olha, se você não me quer hoje, ok, pode falar!
— Que isso, amor, e sou de negar fogo?
— Não tô falando disso.
— Tá falando do quê?
— Nada, deixa.
— Se você não falar, não vou saber o que fazer, né? Não tenho como adivinhar.
— Não é você, sou eu. É comigo.
— Ok. Quer que eu te deixe em casa?
— Não. Me deixa aqui na esquina com a Barata Ribeiro.
— Uai. Você não mora no Leme?
— Me deixa aqui, Anda!
— Tá bom. Se cuida. Juízo!
— Tchau! Te ligo, tá? Não me liga!
— Ok. Você é quem sabe.
Andou até o Leme, sem pensar em muito. Estava quase no prédio quando o menino virou-se. Apontou pro ar. Pra música.
— Moçaquimúsicaéessaaíassim?
— Música? Acho que é do Chico. Chico Buarque.
— Bunitaamúsicanuncaouvisabia?
Sorriu e caçou um dinheiro na bolsa. Quando viu, o menino tinha partido.
Abriu a porta do prédio, cumprimentou o porteiro que acenou enquanto resmungava alguma coisa e cruzou com o casal do 201. Apaixonados, via-se de longe. Não desgrudavam um segundo e faziam cena o tempo inteiro. Uma vez, surpreendeu os dois no elevador num amasso só. Vira e mexe, tinham marcas nos pescoços, braços e sabe-se-lá-mais-onde. Isso ela, que só ia ao apartamento duas ou três vezes ao mês.
Desceu no quarto andar. Foi até o 403. Viu a luz por debaixo da porta. Tremeu de cima a baixo. Ouvia uma música que vinha de dentro do apê. “Ai meu Deus. Ele tá tocando Chico…” pensou.
Lentamente colocou a chave na porta. Abriu-a. E o viu com o velho violão no colo. Desabou ali mesmo. Já não era mais dona de si