e hei de sofrer o amor

Eu tinha muito para falar, mas qualquer palavra que eu escolha não faz juz à dor que sinto. Dói como se o dia e a noite fossem mais de ano pra passar.

Dói.

Mas dói tanto que eu precisaria ser mais de cem para suportar essa coisa surda que me cala o peito e molha a alma.

E isso tudo porque o que acabou ainda mora vivo, no meu coração e minha lembrança.

Entende-se que há de ter um fim, já que houve começo, mas porque há de doer tanto? Só porque era verdadeiro? E se é verdadeiro, não há de ser eterno? E é eterno.

Nunca acaba.

Nunca.

Horizonte roubado

Dez da noite.

— Moçomedáumtroco?
— Vai trabalhar, vagabundo!
— Moçamedáumtrocopelamordideus?
— Tenho não, menino! Me deixa!
— Mossumtroquinhosópreucompráumpão?
— Tá bom, menino, derconto!
— Brigadumossu!
— Nada. Toma juízo e não cheira cola.

Compra um pão na graxa, coca-cola. Sobra um troco. Compra bala. Na padaria fazem uma quentinha com o frango que tava sobrando no forno e com um pouco de farofa, na faixa. Vai até à calçada, perto da igreja e escuta uma música que sai, quase calada, de um apartamento do segundo andar do prédio.

“Oh, pedaço de mim/Oh, metade arrancada de mim/Leva o vulto teu/Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu”

Sem entender bem, o menino se encosta na parede, não briga mais pela comida que os outros moradores de rua teimam em comer com o olho. Passa por ele o carinha que lhe deu o vale-rango. Passa olhando o chão, desviando do olhar daquele menino magro que não reconhecia mais. O menino não mais tinha fome de bala, pão e cola, mas tinha um vazio em si que não cabia mais em alma.


Passa e entra pela portaria com pressa, preocupado com a segurança; cumprimenta automaticamente o porteiro que mal o nota; chama o elevador; aperta o quarto andar; dá de frente ao 403.

Respira fundo.

Abre a porta.

A casa, vazia, cheirava a ar fechado. Fazia um ano desde que os planos ficaram sem pé nem cabeça, que o sentido das coisas perdera-se num arroubo, num desejo desenfreado. Num querer mais que um poder fazer. Olhou para tudo aquilo que planejara para dois e para si no espelho do corredor. Só.

Abriu as janelas, e escutou a música que vinha do vizinho de baixo. Chorou baixinho, humilhado pela vida que o atropelara. Arriou ao chão.

Levantou-se devagar; verificou se o gás estava ainda desligado; se o telefone; a luz não; abriu o chuveiro; tomou banho frio após da água turva de cano parado cair por dois minutos. “Que filho da puta tá ouvindo Chico a essa hora?” pensou um quase alto. Não tinha importância.

A cama estava lá, os lençóis, os travesseiros. Empoeirados, mas arrumados. “Ela ainda vem aqui uma ou duas vezes por mês” — falou para si. Sentou na beira da cama, levou as mãos à face e anoiteceu. Antes, ligou para ela do celular e desligou antes que ouvisse a sua voz. Desespero.


— Idiota! — falou para o telefone já mudo. O Outro escutou. Era o oitavo desde que saíra do apartamento. Desde que.
— Esse babaca ainda te procura? Já disse que cuido disso para você! Dou uma coça nele que nunca mais ele vai pensar no teu nome!
— Não precisa.
— Precisa sim.
— Deixa. É passado para mim. Ele quer que vire presente de novo.
— Não te entendo.
— Nem precisa. Deixa.
— Tá bem. Vamos na Bunker hoje?
— Não. Tem hip-hop hoje e tô fora dessa.
— Ok. Pra onde então?
— Sua casa.
— Ok.

“Esse não passa dessa noite! Babaca machista!” Pensou calada e subiram devagar a República do Peru no Ômega Preto de vidro fumê e neon nos faróis.

— Odisseia? Que tal?
— Olha, se você não me quer hoje, ok, pode falar!
— Que isso, amor, e sou de negar fogo?
— Não tô falando disso.
— Tá falando do quê?
— Nada, deixa.
— Se você não falar, não vou saber o que fazer, né? Não tenho como adivinhar.
— Não é você, sou eu. É comigo.
— Ok. Quer que eu te deixe em casa?
— Não. Me deixa aqui na esquina com a Barata Ribeiro.
— Uai. Você não mora no Leme?
— Me deixa aqui, Anda!
— Tá bom. Se cuida. Juízo!
— Tchau! Te ligo, tá? Não me liga!
— Ok. Você é quem sabe.

Andou até o Leme, sem pensar em muito. Estava quase no prédio quando o menino virou-se. Apontou pro ar. Pra música.
— Moçaquimúsicaéessaaíassim?
— Música? Acho que é do Chico. Chico Buarque.
— Bunitaamúsicanuncaouvisabia?
Sorriu e caçou um dinheiro na bolsa. Quando viu, o menino tinha partido.

Abriu a porta do prédio, cumprimentou o porteiro que acenou enquanto resmungava alguma coisa e cruzou com o casal do 201. Apaixonados, via-se de longe. Não desgrudavam um segundo e faziam cena o tempo inteiro. Uma vez, surpreendeu os dois no elevador num amasso só. Vira e mexe, tinham marcas nos pescoços, braços e sabe-se-lá-mais-onde. Isso ela, que só ia ao apartamento duas ou três vezes ao mês.

Desceu no quarto andar. Foi até o 403. Viu a luz por debaixo da porta. Tremeu de cima a baixo. Ouvia uma música que vinha de dentro do apê. “Ai meu Deus. Ele tá tocando Chico…” pensou.

Lentamente colocou a chave na porta. Abriu-a. E o viu com o velho violão no colo. Desabou ali mesmo. Já não era mais dona de si

Toquinho e Vinícius – Menininha

Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão

Menininha não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção

Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão

Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver

Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim e você
Vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão.

Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
E também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei.

:: ouça a música ::

Sobreviventes da maratona

Atravessando a Nossa Senhora de Copacabana às oito da manhã, mal notou os tipos que o encaravam. Quando subia a Santa Clara em direção à Barata Ribeiro ouviu um coxixo mal abafado.

“É esse mermu?”

Gelou. Sentiu as pernas bambearem e tentou despistar entrando no supermercado. Fingiu que olhava os preços nas prateleiras e deu uma olhada para fora. Eram três e estavam esperando-o do lado de fora.

“Fudeu!” Como podia dar um mole daqueles? Sabia que tinha de sair cedo, mas oito horas era quase de madrugada, ou não era?

“Claro que não era! Tem uma porrada de gente na rua desde as cinco e meia.” Pensou ao se lembrar das madrugadas em que esperava o 416 para ir para a escola na Tijuca. Pegou uma ou duas coisas na prateleira e tentou dar uma olhada melhor nos elementos que o esperavam. Não estavam mais lá fora.

“Fudeu! E agora? Eles estão mais à frente, é certo. Não dá para sair por aqui. Vou tentar a lateral.”

Saía da fila quando viu um deles empurrando o carrinho com uma cachaça e um sorriso na cara. Procurou nervoso os outros dois. Na outra fila. Um com um pão e o outo com raiva. Sabia que não tinha jeito. Começou a sorrir. Sabia que ia acabar de um jeito violento, a namorada sempre dizia isso. Não interessava como ela fosse: gorda, magra, loira, morena, ruiva, japa.

Sempre dizia: “Essa vida vai acabar contigo.”

“Mas é sempre essa vida que acaba com a gente, não poderia ser outra.”

A maior parte delas não entendia a retórica. Mas uma ou duas até riam meio sem graça.

Pena que ele não se lembrava mais dos nomes delas. Também não rezava, nem pedia nada a nenhuma “força acima e além”. Aceitava o que o mundo lhe dava e era grato por isso. Só achava que não devia ter dado o balão no Ajax. Tava cobrando a grana do esquema há seis meses.

Pena que ele tinha usado a grana para pagar o Dantas, que tinha ameaçado capá-lo. Ele sabia que o Dantas era gente boa, até tentou avisá-lo que colocar anúncio na net para vender armas era uma roubada. E ele tinha culpa se a PF tava aprendendo a usar o computador?

“Porra! Essa fila não anda!” berrou em altos brados.

Começou a chamar a atenção dos seguranças e pegou o inseticida do carrinho, destampou e largou tudo em cima da cara da senhora que estava na frente dele. Juntaram quatro seguranças e uma confusão generalizada se formou. Uns seguravam a senhora que estava tendo um choque anafilático – e ele tinha como advinhar que ela era alérgica a DDT? – outros tentavam segurá-lo. Tarefa difícil, já que tinha mais de dois metros e era bem treinado naquelas atividades que os boizinhos da zona sul praticam na sua ociosidade mental.

Largou a mão no cara da cachaça e pulou por cima dos caixas. Saiu correndo pela Santa Clara. Rindo feito uma criança que acabara de fazer uma merda grande como quebrar uma vidraça ou ver as meninas trocando de roupas no banheiro. Caiu no chão antes de ouvir o tiro.

Só sentiu alguma dor quando a cara ralou no asfalto meio quente.

“Lia. Ela entendia a parada.”

Toes Across the Floor

publicada na Tribuna da Imprensa

Toda sexta ele pegava o ônibus e ia lá para a Ilha do Governador. Saía de Copacabana no 123, 125, 127 ou qualquer um outro que passasse no Castelo e pegava o 324 ou o 326 ou ainda um frescão, quando tinha sorte. Passava no supermercado, fazia compras, caçava uma ou duas pizzas congeladas (mussarela sempre, a cobertura complementar faria na hora) e ia passar o fim de semana ouvindo Blur, Libertines, The Cure, Black Crowes e Blind Melon. Sonhava com o dia que só iria andar novamente de táxi.

Os únicos bens que amealhara na sua vida prévia, em família, eram as extensas coleções de livros, revistas, CDs e DVDs que foram alvo de discórdia, disputa e, de certa maneira, desapego.

“É a única herança que vou deixar pro meus filhos. Vai chegar um dia que vou levá-los ao quarto, abrirei os armários e mostrarei: isso tudo é teu. Leva tudo que puderes, mas deixe tudo aqui para que tenhas quando retornares.”

Era xingado pelos amigos por isso, mas não ligava muito. De certa forma, vivia num ascetismo bem caro e trabalhava em função dos livros, CDs, revistas e DVDs. Gastava um tanto também com jornais e tal, mas isso conseguia mais barato acessando à internet.

De quando em vez fazia uma extravagância como um computador melhor, uma televisão de plasma, uma caixa de som de ressonância perfeita, um armário mais resistente para os livros que pareciam procriar. “Basta juntar dois livros, um manto seco, trigo num canto úmido do porão que eles se multiplicam. Eles e os kobolds.” Enquanto isso, o sofá resistia bravamente apesar das manchas não-identificadas que se espalhavam como estampas; a cama que desistira da vida e cometera suicídio seis meses antes, por conta de uma estripulia sexual mal-finalizada; o banheiro que via limpeza nos meses ímpares, não terminados com 31; a cozinha que era um excelente viveiro de animais quase identificáveis. “Acho que deixei um sanduíche aqui, na semana retrasada.”

Desta feita, às sextas-feiras ele corria do trabalho, ansioso por chegar em casa para organizar os filmes que chegavam durante a semana e que metodicamente arrumava do lado do DVD player. Sentava o corpo que já doía e de quando em vez, cochilava. E desses sonhos nasciam histórias de saudades, amores e medos.

“Escreve essas histórias, cara. Você é super talentoso.” Dizia alguma das poucas mulheres que ainda se despiam das suas roupas e do seu tempo para ter prazer com o pouco prazer dele. “Você merece alguma coisa melhor, mais importante que isso.” Dizia uma das ex-esposas, às vezes era a mãe do menor, às vezes a do maior que nunca o visitava.

Ele resmungava e se fechava em copas, guardando para si o universo rico que germinava na sua mente.

Quando morreu, antes de fazer cinqüenta anos, seus filhos venderam os livros a peso, pegaram um ou dois discos que lhes interessavam e deram os restos das roupas, filmes e revistas para um burro sem rabo que passava por ali.

Foram parar num brechó junto com um caderninho velho, de capa dura, folhas amareladas, que fizeram chorar uma moça que se distraia enquanto o namorado experimentava um coturno de um para-quedista de dois metros de altura que morrera de diabetes num dos acampamentos de sobrevivência.

Pagou dois reais pelo caderno.