Velório

publicado em Livinrooon

publicado na Tribuna da Imprensa

Eu tenho uns sonhos recorrentes. Não me recorrem-nos à noite, quando se espera sonhar, mas durante o dia, nos momentos que a vida nos hipnotiza e conseguimos nos tornar presas ideais para os leões, hienas e demais predadores da savana original de onde todos vieram. Acho que é algum tipo de programação genética como a dos cervos que congelam ante a luz forte. Muito me impressiona que nenhum predador na América do Norte tenha desenvolvido uma estratégia de caça que se aproveitasse disso.

Digressiono. Falava eu de sonhos diurnos recorrentes e não das estratégias evolutivas dos alimentos dos grandes felinos.

Dos sonhos, tem aquele que me recorre lá pelo dia vinte de cada mês, antes do pagamento e das contas e depois que o boleto da Mega Sena vence, sempre pela manhã. Eu acordo e, no percurso entre a briga com o relógio despertador e a última volta da chave para trancar a porta da cozinha, a história me é contada inteirinha.

Eu, ou um eu projetado idealisticamente, me vejo conferindo os números da loteria e verifico que foram cinco os certos. Quina! O dinheiro certo para quitar as minhas dívidas, comprar um laptop novo e fazer alguma esbórnia. Quando chego na agência da Caixa Econômica, me informam que acertei a Sena e eu tenho de me virar com dezenas de milhões que subitamente afluem para a minha conta corrente. Obviamente eu salvo a vida dos familiares e dos amigos falidos quando o elevador chega ao térreo e passo a me ocupar do dia-a-dia.

Tem aquele de quando estou num evento chato e não imagino a hora de acabar, ou quando estou no coletivo a caminho do trabalho e tento não emborcar no sono que o sacolejo estimula, e entra a menina morena de pele branco e olhos azuis (ou verdes, ou mel) e a boca vermelha e a saia rodada. Ela me olha, eu a encaro, ela senta-se do meu lado, eu finjo desinteresse, ela puxa uma assunto – que é a parte variável do sonho – eu dou trela e me revelo exímio conhecedor do assunto que provavelmente ignoro na vida real, ela fala que gostou de mim, eu idem, ela me dá o telefone, email, MSN e outras formas de contato moderno e vivemos felizes para sempre.

Normalmente esse sonho acaba no segundo seguinte que inicia. Ela senta em outra mesa ou eu vejo o meu reflexo no espelho e me lembro que o mundo não é nem um filme pornô e nem uma fita água-com-açúcar italiana.

O último não tem hora certa e é o único que me assombrava – e assombra – de fato.

Entro num determinado local. Uma boate, um bar, uma casa de amigos, por vezes um supermercado e uma única vez um banco. Lá, encontro um rosto conhecido. Normalmente uma ex-namorada, rolo, caso, amante. Nisto vem outro amigo e outra pessoa conhecida e subitamente o local está infestado de fantasmas das minhas memórias. Todos querendo a minha atenção, amor, sexo. Aí eu me dou conta que, apesar de popular, não sou Orfeu entre as bacantes e a fome que esses fantasmas sentem são apenas reflexo do meu próprio vazio interior.

Disse que esse não tem data? Minto. Tem sim. Ocorre sempre que descubro que sou um poço de desejo de afeto e atenção e que o mundo não tem a menor obrigação de devolver a paixão que entrego a ele.

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