Ó pai

publicado na Tribuna da Imprensa 

Te agradeço, ó pai, por sua história, repleta do que há de pior num ser humano. Nem tanto pela falta de caráter que lhe é famosa, ou pelo descompromisso que demonstraste em teus mais de sessenta anos ou ainda pelo egoísmo ilustrado pelas diversas cenas de tua vida, mas, sobretudo, pela incapacidade que tiveste em amar sinceramente quem atravessou teu caminho. Tuas mulheres foram tuas conquistas, e não parceiras, e teus inúmeros filhos foram troféus de cópula e fertilidade, não continuação de tua história. Teu desprezo pela emoção alheia, pelo sofrer do outro, pelo sorriso cúmplice são apenas moldura para esse desamor que sempre te norteou.

Por isso e muito mais, tu me és exemplo de tudo que é errado e te agradeço por isso.

Pai, sou grato por me dares a pequena ausência diária, o abandono constante e o oblívio à baia. Nesse espaço que me destes, ainda que inadvertidamente, pude criar pais ideais, famílias perfeitas, e exemplos de humanidade que, com a tua presença, me seriam impossíveis. Sou grato por me dar a chance de sonhar com alguém perfeito e obrigado por nunca destruíres esses meus sonhos com as suas falhas e erros que são tão documentados e por poder adotar os heróis do papel como meus de fato, já que não havia carne para competir com eles.

Obrigado, acima de tudo, por me ensinares desde os primeiros momentos que o mundo não vela por mim, que não existe alguém forte que vai dar uma surra no menino que me ameaça na escola. Aprendi que se eu quisesse bater em alguém, teria de usar os meus próprios punhos, cuspir o meu próprio sangue e destilar o meu próprio ódio. Ou assumir a minha fraqueza e covardia e fugir do embate físico desde garoto. Obrigado por me ensinares que posso sempre fugir, me esquivar, me esconder.

Mesmo quando não é preciso.

Sou agradecido por me mostrares que a mãe também pode ser pai e que família é mais que sangue ou nome no cartório. Que avôs e avós, tios e tias, primos e primas são tão importantes quanto tu, principalmente quando te dão colo, surras, presentes e castigos. Todo carinho e atenção, ainda que mendigados, são importantes para quem tem uma ausência como referência. Desta forma, aprendi que todo amor é válido, raro, sagrado e tem de ser respeitado. Que cada gota de paixão é um ato divino e tem de ser respeitada. Que o respeito, por si mesmo, é algo que tem de ser conquistado a cada dia, a cada ato, a cada palavra. E que posto, ascendência ou hierarquia não significam nada quando não são expressões do ser, manifestações da alma.

Te agradeço, sobretudo, pelo vazio que é a nossa relação, pois nesse vácuo que me criei e moldei o homem que hoje eu sou.

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