Tiros sobre Copacabana

publicado em Não… Não para!

publicado na Tribuna da Imprensa

“Você tem uma arma?”

Era para eu ter ficado chocado. Ela sempre fazia isso. Do nada, sacava uma frase surreal no meio da conversa. Na verdade, nem precisaríamos estar conversando. Bastaria ter algum silêncio inadequado que aquela cabecinha seqüelada produziria alguma coisa digna de nota. Totalmente sem sentido, mas notável mesmo assim.

“Sério mesmo. Você tem uma arma?” “Nunca teria uma em casa, você sabe disso. Acho que pode causar mais acidentes que proteger. Principalmente nas minhas mãos.” “Hm. Sei. Mas nunca quis ter uma arma?”

O mais engraçado é que ela concatenava o absurdo com uma razão improvisada. Sempre que vinha com esse “hm sei” dela, eu já sabia no que daria: dores de cabeça e um nó racional que repercutiria por toda a semana. Se havia algo que essa mulher sabia fazer com maestria, era me encucar com algo que, ao chegar o domingo, não teria a menor importância.

“Qual o porquê de você querer uma arma agora?” “Mas eu não quero uma arma. Só quero saber se você tem uma, oras! Não se pode perguntar mais nada?”

Essa era outra tática. Transformava o absurdo em algo óbvio. Me desarmava de tal forma que só tinha como assentir e responder diretamente qualquer coisa que me perguntasse dali pro fim da noite. Ou terminaria ali mesmo, o que não era objetivo de nenhum de nós no momento. Aparentemente.

“Não tenho uma arma, minha linda. Nem terei.” “Pena.”

Juntou cuidadosamente as tralhas que havia espalhado em cima da mesa do bar. As chaves do carro e da casa. O celular — “não deixa o celular na mesa que os moleques daqui do Hipódromo roubam e você nem vai perceber o que aconteceu”, eu dizia. A carteira de motorista. A cópia da identidade rasgada e maltrapilha que nunca tirara a segunda via. Os trocados do doce que o moleque vendera. A vontade de transar. Tudo dentro da bolsa de vinil vermelha que ela ostentava contra o bom gosto e senso.

“Uai. Já vai?” Apelei desesperado. Era quase como buzinar no trânsito ou chamar de gostosa a gordinha que passa na frente da obra. Inócuo, mas impossível de controlar.

“Vem. Vamos.” Surpreso, fui.

Duas horas de suor, lágrimas — sim, ela chora na hora H — e algum sangue — malditas unhas nas costas — ela desabou satisfeita. Eu sigo, semimorto. Ela caprichara bem na parte sadô da nossa relação sem nome. Num pulo, ela se levantou. Foi até o guarda-roupa e trouxe uma caixa de madeira com veludo. Dentro, como era de se esperar, uma arma. Um trinta e oito cromado. Ou um quarenta e cinco, sei lá. Nunca entendi dessas coisas.

“É teu. Atira.” “Hein?” “Atira, eu disse.” “Como assim? Atirar? Atirar em quê?” “Sei lá. Pro teto. No lustre. No abajur. Atira, anda. Atira!”

E, imperativa, apontava para possíveis alvos no quarto. Ao mesmo tempo suas mãos procuravam algo que já estava mais que esfolado, dadas as atividades lúdicas de horas a fio.

Lânguida, ela gemia. “Atira, vai. É bala de festim.” E era. E quem vai entender a tara de quem mora na Sá Ferreira…

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